Aquilo que já era claro, esta semana tornou-se evidente e na próxima semana será inegável: o 25 de Novembro deixou de ser uma data histórica e passou a ser um símbolo político. Definitivamente, todos os partidos da direita decidiram que valia a pena copiar o que a esquerda fez com o 25 de Abril: adulterar a História para ganhar uma bandeira. Na segunda-feira, o país estará firmemente dividido, como gostam os sectários: a direita comemorará o 25 de Novembro e a esquerda ignorará o 25 de Novembro.
Quer dizer: na verdade, a direita não vai comemorar “o 25 de Novembro” — vai comemorar um 25 de Novembro de fantasia que serve apenas propósitos políticos do presente. O mais provável é que ninguém queira saber, mas, apesar disso, talvez valha a pena explicar como as coisas se passaram realmente. Ao contrário da história da Carochinha que agora nos tentam contar, o que saiu do 25 de Novembro não foi uma democracia plena. Nada disso. Naquela data, simplesmente, Portugal deixou de ter uma democracia sitiada e passou a ter uma democracia tutelada. Foi, sem dúvida, um avanço e, em certo sentido, um alívio. Mas não foi uma libertação.
Com o 25 de Novembro, os vencidos não foram bem vencidos. O PCP, claro, teve o seu poder reduzido, limitado e enquadrado. Mas recebeu a bênção do regime para manter alguns feudos, como os sindicatos, que ao fim de 50 anos continuam capturados pelas conveniências do partido. Do outro lado, os vencedores não foram bem vencedores. Os políticos que queriam acabar com o processo revolucionário perceberam rapidamente que isso não aconteceria de graça. Os militares que fizeram o 25 de Novembro apresentaram o preço: queriam condicionar os partidos e controlar o regime. Impuseram à Assembleia Constituinte um “pacto” que retirava aos deputados a liberdade total que deveriam ter tido para decidir como seria a nova Constituição; e decretaram a manutenção do Conselho da Revolução como polícia, juiz e guardião do sistema.
No último filme de Indiana Jones, surge uma relíquia de Arquimedes que permite viajar no tempo. É um objeto que seria muito útil à nossa direita. Mas, na impossibilidade de voltar presencialmente ao dia 25 de Novembro de 1975 para ver em direto e ao vivo o que aconteceu, os nossos partidos podem sempre recorrer a outros meios. Por exemplo, a uma tese de mestrado apresentada por Francisco Barreira de Sousa em 2019. Aí, percebe-se que logo na reunião do Conselho da Revolução de 3 de Dezembro de 1975, escassos dias depois do 25 de Novembro, os militares vitoriosos falaram abertamente sobre o que lhes ia na cabeça. Franco Charais tornou claro, de forma cândida, que o MFA deveria conservar um “direito de tutela sobre os partidos políticos”. Pezarat Correia insistiu, com crueza, que o Conselho da Revolução tinha de arranjar forma de “manter a direção política do processo revolucionário”. Vasco Lourenço, sempre tonitruante, avisou que “não aceitava que se abandonasse a condução do processo à democracia formal” e que também “não aceitava” que os partidos renunciassem ao pacto com o MFA. Melo Antunes, eternamente vigilante, alertava que, depois do 25 de Novembro, era preciso agir para que a iniciativa “não fosse recuperada pelas forças de direita”. Finalmente, Costa Gomes, que acumulava a farda militar com a cadeira de Presidente da República, sentenciava, de forma peremptória, que os partidos “não podiam arredar-se para longe” da “política definida pelo MFA”.
Não se tratava de meras proclamações. Os militares do 25 de Novembro queriam mesmo mandar e pretendiam “garantir, na maior medida possível, a intervenção do MFA na vida política”. Inicialmente, reivindicavam ser eles a escolher o Presidente da República através de uma eleição indireta; planeavam ter o poder de fazer a primeira avaliação dos programas de governo para perceber se eles obedeciam aos “objetivos da revolução”; tencionavam “ser ouvidos sobre a designação do primeiro-ministro”; e exigiam ter poder de veto sobre os nomes que fossem escolhidos pelo menos para ministro da Defesa e da Administração Interna. Mesmo tendo mais tarde de ceder nestes pontos, não cederam em muitos outros. O Conselho da Revolução foi efetivamente inscrito na Constituição e, nos sete anos seguintes, exerceu uma tutela férrea sobre governos democraticamente eleitos — nomeadamente (convém que a direita saiba disso) sobre os governos de maioria absoluta da AD liderados por Francisco Sá Carneiro.
São estes, portanto, os novos heróis dos partidos da direita e é isto que os partidos da direita querem comemorar na segunda-feira. Que lhes faça bom proveito.
Nota: a tese de mestrado “Os Pactos MFA-Partidos e as origens do sistema de governo da Constituição de 1976”, de Francisco Barreira de Sousa, tem extensas citações de reuniões do Conselho da Revolução e pode ser consultada aqui.