Sabemos que as coisas não voltarão a ser como antes, mas a maior mudança poderá estar relacionada com aquilo a que chamamos dinheiro. Na ânsia de minimizar o impacto da pandemia nas grandes economias mundiais, uma das soluções foi inundar o mercado de dinheiro que, a prazo, poderá gerar uma onda inflacionária generalizada com implicações no sistema financeiro mundial e criar a oportunidade para a entrada em cena de uma protagonista inesperada: a tecnologia blockchain que deu origem à bitcoin.

Mas nem mesmo isto poderá ser grande novidade, se pensarmos que além da bitcoin já existem mais de três mil criptomoedas  e que o passo seguinte está a ser disputado entre os bancos centrais, com a emissão das CBDC’s, e as gigantes tecnológicas, que também pretendem lançar as suas próprias moedas digitais num movimento, que, em breve, irá revolucionar o sistema financeiro internacional.

Rapidamente se percebeu que a crise económica decorrente da pandemia poderia ter efeitos bem piores do que a própria doença. Por isso, a reação das grandes economias mundiais foi rápida e impactante. Nos EUA, as medidas da FED e do Congresso foram implementadas em tempo recorde, logo no mês de Março, e com o triplo do impacto das adoptadas na crise de 2008. Além da baixa das taxas de juro e de uma linha de empréstimos especiais, o Cares Act, o programa de ajuda aprovado pelo Congresso no valor de 2,2 triliões de dólares, inundou o mercado de dinheiro como forma de atenuar os efeitos da crise que se avizinhava.

Um pouco mais a custo, e já no final do ano, os líderes da União Europeia também aprovaram um pacote no valor de 1,8 mil milhões de euros destinado à reconstrução das economias europeias, seguindo o modelo americano.

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Desta forma, os efeitos sobre a economia tiveram bastante mais sucesso do que na saúde. Apesar da crise, os EUA vão fechar 2020 com um défice de 3,7%, um desempenho apenas superado pela China e Coreia do Sul e bem melhor do que a generalidade das grandes economias mundiais.

A solução implementada pela FED e pelo BCE teve o mérito de proteger as economias do impacto da pandemia face à queda abrupta da actividade económica, mas está longe de resolver o problema. E nem são apenas questões operacionais como a bomba-relógio das moratórias, porque o maior problema poderá vir de uma onda inflacionária que já se perfila no horizonte.

A quebra sucessiva dos recordes dos índices bolsistas até podem ser o reflexo da saúde da economia americana, mas com títulos a dobrar, triplicar ou a multiplicar ainda mais a sua cotação ao longo deste ano, pode apenas evidenciar a desvalorização da moeda em que estão cotadas.

Podemos, pois, estar à beira de uma crise de inflação de grande dimensão. E, nesse contexto, o espírito de Bretton-Woods poderá desta vez assolar a moeda americana, fazendo irromper um modelo totalmente inovador para o sistema financeiro mundial.

É certo que o dólar tem vindo a perder terreno. Só no ano passado, a moeda americana desvalorizou 8% face ao euro e ao dólar australiano e um pouco menos para outras moedas como o won sul coreano (6,1%) ou o iene japonês (4,2%).

Hoje, cerca de 30% dos dólares que circulam na economia foram impressos em 2020. E se pensarmos que quatro em cada cinco dólares foi colocado no mercado depois da crise de 2008, ou seja nos últimos 12 anos, a silhueta da inflação começa a assomar no horizonte com contornos cada vez mais nítidos.

Ao inundar o mercado de dinheiro fresco através das bazucas financeiras para combater a crise económica causada pela pandemia, os bancos centrais podem estar a contribuir para a desvalorização do valor do dinheiro. Ou, pior, podem estar a destruir o dinheiro.

Depois de desmantelar toda uma cadeia de sectores, o modelo digital atinge os alicerces do poder económico, retirando aos bancos centrais o exclusivo do dinheiro. Uma condição que, há cerca de uma década, a bitcoin já tinha alcançado, mas que agora pode estar a ganhar relevância global. Caso a bitcoin ganhe expressão mundial, o estatuto do dólar como moeda de reserva internacional poderá perder terreno. Algumas das maiores instituições financeiras começam a olhar para a bitcoin como activo de investimento e isso pode mudar tudo, uma vez que, tradicionalmente, os seus activos são baseados em dólares.

Por isso, se uma nova crise de inflação eclodir, todo o sistema será afectado, desde o dólar ao ouro, e a única diferença será que, desta vez, poderá existir uma reserva de valor alternativa e, não menos importante, credível.

A bitcoin surge neste contexto onde todos os outros sistemas falharam ou evidenciaram grandes fragilidades, para proporcionar à sociedade a possibilidade de utilização de um protocolo de património descentralizado.

A bitcoin surgiu em 2009 e é a primeira aplicação da tecnologia blockchain. De uma forma simples, é uma base de dados distribuída com duas particularidades distintivas de todas as outras. É descentralizada e imutável ou seja, ninguém a controla, ninguém a modifica. Aplicada ao dinheiro, como no caso da bitcoin, contém duas características disruptivas: a desintermediação do sector financeiro e a perenidade da informação. Com o dinheiro assente nesta tecnologia, a estrutura de poder será profundamente alterada, porque a bitcoin é uma moeda digital que não é emitida por nenhum banco central e que, sendo descentralizada, não é controlada por nenhuma entidade. Actualmente, estão em circulação cerca de 18 milhões e 600 mil bitcoins de um total de 21 milhões, uma vez que a partir deste número não será possível emitir mais nenhuma bitcoin. E quanto mais dólares entrarem em circulação, maior será o valor de cada bitcoin.

Estas características tornam a bitcoin um bem escasso, universal, tendencialmente imune a movimentos manipulatórios, resistente a catástrofes, dado ser descentralizada, e, como tal, um activo adaptado a períodos de enorme incerteza. Como este.

No dia 16 de dezembro 2020, o valor da bitcoin alcançou os 20.836 dólares, o maior valor de sempre. Sem depender de nenhuma instituição pública ou privada, nem de intermediários para a realização das transações, a bitcoin parece estar a ganhar uma relevância crescente e a ocupar um lugar no sistema financeiro. Nativo digital por excelência, a bitcoin estabelece relações directas entre os diversos protagonistas. Notários, comissionistas, auditores, bancos centrais e governos, todos ficam fora de um sistema que se controla a si mesmo e que não depende de nenhuma entidade em particular, na medida em que sendo um sistema monetário independente, a bitcoin é concorrente de cada Estado.

O sistema financeiro mundial nos cuidados intensivos

A maior vítima da Covid-19 não foram os idosos, nem os obesos, foi o sistema financeiro mundial, que perante uma crise instantânea do lado da oferta e, simultaneamente, da procura, entrou directamente para os cuidados intensivos onde lhe têm sido ministradas doses cavalares de dinheiro fresco. Em breve, poderemos ser confrontados com uma crise inflacionária generalizada de onde emergirá um novo paradigma e um novo padrão, com a substituição do dólar pelo dinheiro digital e a bitcoin ao invés do ouro.

Nenhuma economia estava preparada para isto, mas quando a pandemia provocou uma paralisação profunda da actividade económica, a solução foi despejar dinheiro no mercado. E acelerar o lançamento das CBDC’s, as moedas digitais dos bancos centrais que já estão a revolucionar o sistema financeiro mundial. Assim como os correios ignoraram o email ou os retalhistas desprezaram o eCommerce, também os bancos centrais desvalorizaram o dinheiro digital. Mas a rendição das instituições tradicionais ao dinheiro digital vai permitir, por exemplo, customizar taxas de juros em função do destinatário, sejam eles bancos ou outras instituições, aumentando o controlo estatal sobre as empresas e os diferentes sectores da economia e, a prazo, substituir o dinheiro.

Depois de ter sido o primeiro país europeu a adoptar o papel-moeda, no sec. XVII, a Suécia poderá ser também o primeiro país europeu a lançar a sua moeda digital, a coroa eletrónica ou e-crown, depois da China o ter feito recentemente. Quem ficar para trás, poderá ter de depender de moedas digitais de outros países, pelo que estamos apenas no início de uma corrida generalizada ao dinheiro digital.

Devido à sua escassez, o ouro é o metal mais valioso do mundo e regista uma valorização de 4.000% desde o início da década de 70. Há dez anos atrás, um dólar podia comprar 0,21834061 bitcoin, mas hoje compra apenas 0,00004701 bitcoin. Não restam dúvidas sobre qual das moedas está a perder valor. E se a bitcoin continuar a valorizar e a ser aceite como reserva de valor, poderá igualar a capitalização do ouro, que é de cerca de 11,7 triliões de dólares. Nessa altura, cada bitcoin valerá 500 mil dólares e tornar-se-á ouro digital.