À hora a que escrevo este texto a única certeza que temos é que, desde o passado Domingo, todos os textos sobre a situação política portuguesa deverão começar por “à hora a que escrevo este texto”. Caso contrário, arriscam-se a não ter desculpa para o anacronismo. Com esta inédita composição da Assembleia da República, vai ser impossível escrever sobre o tema sem correr o risco de ser ultrapassado pelos acontecimentos. A partir das eleições, a opinião política passou a ter a validade do leite fresco quando já pica no nariz: pode-se beber, mas é possível que tenha de voltar para trás. O comentador político vai ser uma espécie de velhinho viciado em raspadinhas, a arriscar várias vezes até acertar.

Como é que chegámos aqui? Julgo que a responsabilidade é dos políticos que deixaram de perceber o povo português. Corrijo: à hora a que escrevo este texto, julgo que a responsabilidade é dos políticos que deixaram de perceber o povo português. Logo à noite se calhar já terei mudado de opinião. Essa falta de compreensão viu-se, por exemplo, quando Paulo Núncio falou na hipótese de voltar a referendar a interrupção voluntária de gravidez. O agora deputado do CDS cometeu um erro de percepção. Depois de dia 10, é óbvio que Núncio se equivocou. Os portugueses não queriam votar o aborto. Queriam era votar um aborto. E conseguiram. O Parlamento está irreconhecível.

A falta de ligação entre governantes e portugueses está bem patente na forma como o PS perdeu 400 mil votos de 2022 para cá. Quer dizer, conhecendo o PS, é possível que estejam em negação não encarem aquilo como uma perda. Devem achar que os votos não estão perdidos, estão apenas cativados. São do partido, só não foram é usados.

O grande vencedor da noite foi Marcelo Rebelo de Sousa, único responsável pelo sucedido. O Presidente não está preocupado com o futuro do regime, porque está exclusivamente preocupado em preparar o seu. Nunca diria que Marcelo tinha simpatias pela IL, mas acaba de fazer o que os empreendedores liberais costumam sugerir e criou o seu próprio emprego. Daqui a dois anos, o Presidente vai ficar desocupado. Quando terminar o seu mandato, Marcelo vai querer voltar ao comentário político. Ora, comentar um Governo estável durante 4 anos é uma seca. Mesmo a costumeira alternância entre PS e PSD é aborrecida. Marcelo não está para isso. Até porque já tem quase 80 anos e vai começar a esquecer-se de nomes e cargos. Mas se a legislatura estiver sempre a cair, Marcelo não terá de se lembrar de protagonistas que estão sempre a mudar.

Tirando Marcelo, a única pessoa que vai lucrar com esta composição parlamentar é o carpinteiro da Assembleia da República. Com 48 deputados do Chega a bater ininterruptamente nos tampos da bancada, vai ter imenso serviço a reparar madeira partida. 48 à hora a que escrevo este texto, claro.

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