A política está carregada de ironias e não cansa de surpreender. Até 7 de novembro de 2023, jornalistas, comentadores e políticos dedicavam horas de debate à questão da refundação das direitas. Não faltaram convenções, congressos, entrevistas, livros e manifestos para discutir (com fundamento) o óbvio: o PSD estava em crise, o CDS em vias de extinção, a IL a ganhar substância e o Chega em cavalgante crescimento. O espaço não socialista tinha de encontrar uma saída para ambicionar ser poder e foi aí que se ergueram barricadas, se traçaram linhas vermelhas e se ditaram sentenças sobre a inevitável hegemonia a que estava destinado o PS. A direita oscilava entre o indisfarçável derrotismo, a ambição de André Ventura e o sonho sebastiânico em torno de Pedro Passos Coelho. A queda de António Costa mudou tudo.
Não que os problemas de identidade à direita tenham desaparecido. Mas o poder é afrodisíaco que baste para sossegar os mais alarmistas, seduzir novos fiéis e, até ver, neutralizar a ameaça Ventura, que nunca escondeu a vontade de suplantar os sociais-democratas. Ora, alterados os ventos, de repente, o país político descobriu que, afinal, é a esquerda que está em apuros. Ainda que os problemas estruturais deste bloco não sejam inteiramente novos, a discussão sobre a refundação da direita deu lugar ao debate sobre a imperativa e inadiável necessidade de organizar uma frente de esquerda para derrotar o adversário. O PS foi atirado para o divã onde antes estava deitado o PSD e o exemplo francês fez sonhar os mais voluntariosos.
Até ver, Pedro Nuno Santos, o homem da ‘geringonça’, tem resistido ao canto da sereia. Percebe-se porquê e tem oito letras: realismo. Fundamentalmente, há três razões que justificam a aparente e contra-intuitiva urticária de Pedro Nuno em liderar qualquer coisa que se assemelhe a uma frente de esquerda à francesa. Em primeiro lugar, a ideia que anos e anos de democracia não conseguiram contrariar: as eleições em Portugal (ainda) se ganham ao centro e com projetos moderados. Veja-se, de resto, o esforço que Pedro Nuno Santos fez desde o seu primeiro dia como candidato a líder do PS para fugir a qualquer rótulo de ‘perigoso radical de esquerda’.
Em segundo lugar, uma evidência: a maioria sociológica do país parece ter virado, em definitivo, à direita, como provam as mais recentes eleições legislativas e europeias. A aritmética não joga a favor do bloco das esquerdas unidas e o “não é não” de Montenegro a Ventura acabou com o medo da ascensão do Chega ao poder, anulando grande parte do argumentário que poderia alimentar essa coligação de interesses. ´
Por fim, e ao contrário do que acontecia com o PSD, os socialistas não têm à sua esquerda qualquer partido que dê provas de estar a crescer com algum vigor. Pelo contrário, aliás. A Pedro Nuno Santos é-lhe colocado um desafio inglório: escolher aliados vitoriosos entre mortos e feridos.
Percebe-se que os partidos à esquerda do PS desejem ardentemente essa convergência e que o anunciem aos sete ventos, atropelando-se em manifestações de interesse. O Livre, que foi criado para ser um satélite do PS, defenderá convergências até para uma assembleia de condomínio. Depende de Rui Tavares e, até ver, Rui Tavares ainda agarra o voto de conforto à esquerda. Apesar do resultado nas eleições legislativas, é curto.
O Bloco de Esquerda, que nasceu como um partido de causas, em particular o direito ao aborto, e que viu muitas dessas bandeiras entretanto conquistadas e/ou capturadas pelo PS, precisa de um desígnio que lhe permita sobreviver quando não consegue agarrar mais nada, nem mesmo o combate imaginário contra a ameaça neoliberal fascista que nasce nas sombras. Até o PCP entra no jogo: cada vez mais só e cada vez mais mínimo, precisa de aparecer como único partido que rejeita essa aliança para se diferenciar e manter os seus (poucos) eleitores mobilizados.
Em bom tempo, o líder socialista percebeu que estava a ser atirado para uma armadilha, mesmo que essa armadilha seja, em teoria, o seu lugar natural. Uma coisa é convergir depois de contados os votos e numa posição de força; outra é ficar dependente de agendas em muitos casos contraditórias com o programa e ideário socialistas.
Mesmo os debates em torno da corrida contra Carlos Moedas ou da sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa parecem estar condenados. A convergência à esquerda até pode acontecer, mas é difícil imaginar plataformas coesas em torno de candidaturas como de Mariana Vieira da Silva ou de Alexandra Leitão (no caso de Lisboa) e de Mário Centeno ou de António Vitorino (no caso das próximas presidenciais). Com estes protagonistas, o casamento será sempre por manifesta conveniência, irrepetível e inconsequente para futuro. Não é Jorge Sampaio quem quer e não se fabrica um do dia para a noite.
Antes de discutir alianças e convergências, os partidos à esquerda deveriam perceber o que aconteceu na última década, marcada essencialmente por três momentos: o combate (durante os quatro anos da troika), a ilusão (durante a ‘geringonça’) e a desilusão (pós-2019). Durante este período, a esquerda passou da oposição para o poder e quando António Costa a dispensou alegremente não tinha lugar de retorno — o monopólio da contestação tinha mudado de mãos e o benefício da dúvida passou para os partidos emergentes à direita. Ficou sem identidade.
Oito anos de governação depois, o PS, por sua vez, sobreviveu amassado, com o pior resultado (em percentagem de votos) desde 1987 e à boleia do eleitorado mais velho e menos qualificado. A vitória nas europeias até pode ter ajudado a amenizar a queda, mas não disfarçou o óbvio: sem parceiros fortes à esquerda, impossibilitado de ter uma maioria de deputados que lhe permita governar, os socialistas precisam de crescer sozinhos para sonharem com um eventual regresso ao poder. E isso, até ver, não se consegue com frentes de esquerda de utilidade duvidosa. Pedro Nuno Santos percebeu-o. Ainda bem.