Como os tempos mudam. No início de 2001, era António Guterres primeiro-ministro e começavam a acumular-se os sinais de crise, lembro-me de lhe ter perguntado porque não avançava com algumas das reformas que sabia serem necessárias. Enterrado numa poltrona da sala onde me recebera em São Bento, respondeu-me com um misto de desalento e crispação: “Os portugueses têm de compreender que há um preço a pagar quando um governo não dispõe de maioria absoluta”.

Estávamos na legislatura dos 115-115, a legislatura dos orçamentos do queijo limiano, a legislatura que terminaria uns dez meses depois desta conversa com esse mesmo António Guterres a demitir-se para, como disse então, evitar que o país caísse “num pântano político”. A tal legislatura que começara com umas eleições que o PS vencera folgadamente, depois de uma campanha em que o seu líder nunca quisera pedir a maioria absoluta, mesmo sendo esse o seu objectivo assumido.

20 anos depois outro líder do PS parte para mais uma campanha em que fará tudo para chegar à maioria absoluta ao mesmo tempo que quase jura que não a deseja, pois até já chegou ao ponto de afirmar que os “portugueses têm más memórias das maiorias absolutas“. E de facto parecem ter, pois todas as sondagens indicam que a maioria dos entrevistados não deseja que saia qualquer maioria absoluta das próximas eleições – nem sequer os eleitores do PS apoiam essa ideia.

Aparentemente há semelhanças entre a estratégia de Guterres em 1999 e a de Costa em 2019, já que ambos sabem estar perto da maioria absoluta, ambos a desejam, mas ambos optam por não a pedir. Mas essas semelhanças são superficiais e enganam.

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Em 1999 Guterres não queria pedir a maioria absoluta porque achava que isso o colava à “arrogância” de Cavaco; Costa não pede a maioria porque sabe que os portugueses não a desejam.

Em 1999 Guterres desejava a maioria absoluta para executar um projecto que tinha para o país, concordasse-se ou não com ele; em 2019 o único projecto de Costa continua a ser o manter-se no poder e navegar à vista.

Por isso se em 1999 Guterres pecou por timidez e falta de ambição, em 2019 a aposta de Costa é outra: é fazer de morto e ganhar o campeonato dos sonsos. Por outras palavras: ele não quer que os portugueses compreendam o preço de não dar a um partido a maioria absoluta, ele quer que os portugueses estejam suficientemente distraídos para ele chegar à maioria absoluta como quem não quer a coisa. Ele não quer entrar pela porta frente, quer entrar pela porta dos fundos. É de resto a sua especialidade, como bem sabemos.

É por isso que foi muito interessante assistir à maratona de debates das últimas duas semanas. E ver como António Costa preferiu por regra responder aos ataques dos seus adversários em vez de ser ele a conduzir as discussões para os terrenos que lhe fossem mais favoráveis. Houve debates que foram mesmo quase conversas de café (como o primeiro de todos, com Jerónimo de Sousa) e outros onde claramente o primeiro-ministro necessitou de uma segunda-oportunidade para contra-atacar (como sucedeu com Rui Rio, no último dia). Só mesmo no fim, no derradeiro debate a seis para a rádio, o verniz estalou a sério, mas também foi nessa altura que o aperto foi maior.

O que se compreende: António Costa não quer desafivelar o seu sorriso nem pode arreganhar o dente se quiser continuar a passar pelo “santo pacificador” que fala com todos, se entende com todos e, por isso, com todos continuará a falar e a negociar no dia seguinte a 6 de Outubro.

Há quatro anos, quando andou pelo país em campanha, percebeu que ia perder as eleições quando encontrou por todo o lado portugueses que não se tinham esquecido da bancarrota de Sócrates. As “contas certas” de Centeno foram e são o antídoto para ultrapassar essa memória.

Mas nestes meses que não deixou de andar por aí só pode ter percebido que entretanto cresceu a percepção de um “PS dono disto tudo”, nepotista e clientelar, um partido já com demasiados tentáculos e a quem se teme entregar todo o poder.

É por isso que sabe que não pode pedir a maioria absoluta. O problema não são as más memórias do passado – é mesmo o medo deste presente, deste PS, destas famílias, destes negócios.

É por isso que mais uma vez faz todo o sentido o cordeirinho que nos apareceu nos debates, o Costa quase bonacheirão que só para o final mostrou uma combatividade que, de tão tardia, até pareceu deslocada.

E depois, para que quer Costa a maioria absoluta? Em nome da estabilidade? Teve-a esta legislatura. Para prosseguir um sonho, um projecto de mudança, uma ambição? Não tenho memória de um programa do PS tão “mais do mesmo” e sem sequer assegurar que haverá recursos para cumprir o que promete.

Mas isso nem importa muito porque ninguém lê os programas e julgo que Costa já percebeu que os portugueses, bem lá no fundo, não desejam mais do que desejavam no tempo de Salazar – “viver habitualmente” –, só que assumir tal falta de ambição também não é coisa que chegue para pedir uma maioria absoluta.

Por isso antes chegar lá sendo sonso e tratado de nos apanhar distraídos. Afinal de contas já funcionou uma vez, e foi só há quatro anos.