Saído em Agosto, ‘The History of Water‘, é um livro de escolhas. Mais precisamente de uma que, de tantas vezes renovada, se confunde com muitas. Da escolha que um país fez no século XVI e que repetiu no seguinte e depois no XVIII e por aí em diante até agora. Esse país é Portugal; o escritor chama-se Edward Wilson-Lee e é professor de literatura em Cambridge. ‘The History of Water’, cuja tradução pela Bertrand se espera para breve, conta-nos a história de duas vidas que se tornaram duas formas diferentes de Portugal (e de outros países também) lidar com a globalização. Uma é a de Damião de Góis, humanista amigo de D. João III que, a mando e protecção deste, andou pela Europa em missões para a Coroa. Esteve em Antuérpia, viajou até ao Báltico, Rússia, foi amigo de Erasmo, conheceu Lutero, viveu na Suíça, Holanda, Itália, foi reconhecido por Carlos V e regressou a Portugal onde a morte do rei o deixou desprotegido da fúria e inveja dos Portugueses que, na corte, padeciam já do mal que explica parte do fracasso do nosso desenvolvimento. Damião de Góis foi um homem do mundo que, de olhos abertos, sorvia o que a Europa lhe proporcionava. Servia a Coroa e, porque o fazia bem, quis trazer para Portugal o melhor que se fazia lá fora. Foi preso com quase 70 anos, até ser libertado por estar doente e acabar por morrer sozinho numa rua de Lisboa.

A outra vida é a de Luís Vaz de Camões. Sobejamente conhecido tornou-se, em 1880, num mito, figura maior da história de Portugal. Grande poeta, devidamente reconhecido pelos grandes da Europa, a imagem que dele fizeram de homem impetuoso e briguento, de paixões por mulheres imaginárias e inalcançáveis, representa um país imperial, sonhador e nostálgico dos grandes feitos, um conjunto de mitos que prendeu o imaginário nacional desde então. Camões combateu no Norte de África, andou por Moçambique, Ormuz, Índia e China até regressar a Portugal onde morreu, diz-se que pobre, embora isso seja discutível. Apesar de tudo, Camões foi mais que o mito que dele fizeram e que justificou escolhas que outros tomaram.

É interessante que seja um estrangeiro a pegar em duas figuras do início da globalização ocidental e, a partir da vida de um e da construção que se fez da vida de outro, deixar pistas e desafios para as respostas que queremos no nosso tempo. Em Portugal, na Europa e no Ocidente no seu todo. Tal como não deixa de ser curioso que essa ambivalência surja no mesmo ano em que a guerra voltou ao continente europeu e precisamente no mesmo mês em que o chanceler alemão, Olaf Scholz, defendeu em Praga a sua visão para a Europa, naquele que foi um dos discursos mais importantes dos últimos anos, a par com o de Emmanuel Macron, na Sorbonne, em 26 de Setembro de 2017 e sobre o qual tive oportunidade de escrever em jeito de balanço do primeiro ano de Macron enquanto presidente francês.

Em Praga, Scholz defendeu o alargamento da UE a leste, Balcãs, Ucrânia, Moldávia e Geórgia, incluídos. Na medida em que este alargamento torna impraticável as decisões por unanimidade sugeriu que as tomadas em matéria política externa comum passem a ser feitas por maioria. Falou da soberania europeia, que cada vez mais se confunde com económica e implica independência energética e inovação e produção tecnológica. Mas também falou de defesa. Propôs uma maior coordenação militar entre os estados-membros da UE como modo de tornar mais efectiva a relação destes com a NATO. Também sugeriu um Comando e uma Estrutura de Controlo europeus, com um quartel-general próprio, com o que isso requer a nível de estrutura financeira, pessoal e tecnologia. Para dar o exemplo, a Alemanha já está a ajudar militarmente a Lituânia e a Eslováquia da mesma forma que remete tanques para Praga. Nessa linha, Berlim prevê aumentar a sua despesa na área da defesa. O objectivo é que a Alemanha tenha uma força militar equiparável à francesa.

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Como seria de esperar os aplausos foram escassos ou inexistentes. Não admira. Contrariamente ao que sucedeu na Europa Ocidental, todos os países do leste europeu foram invadidos pela Alemanha Nazi. Polónia, Chéquia, Eslováquia, Roménia, Bulgária, Ucrânia e até os países Bálticos querem protecção contra a Rússia ao mesmo tempo que receiam ficar entalados entre Moscovo e Berlim. A agenda que Scholz apresentou em Praga não vai ser fácil de implementar, mas como o próprio afirmou, a alternativa pode ser o fim da UE. A Europa precisa de se coordenar melhor para confrontar a Rússia e servir de contrapeso à China. Se não o fizer está condenada a ser um museu onde chineses e norte-americanos passam férias.

Mas houve um momento no discurso de Scholz que diz nos especialmente respeito. Scholz faz referência directa a Portugal quando menciona que o entendimento que temos dos desafios mundiais diverge dos da Macedónia do Norte. O nosso país serviu de pretexto de comparação porque se situa no extremo ocidental e é pequeno. Scholz tem razão nesse aspecto, mas esquece-se de um ponto: contrariamente à Macedónia do Norte, Portugal tem interesses directos na América do Sul, em África, na Ásia e na Oceânia. Portugal não se esgota na Europa. É muito mais que isso. E é precisamente por isso que a visão que Portugal tem dos desafios do mundo diverge dos Macedónios. É essa visão, que vai além do continente, que Portugal pode trazer para a Europa, uma abertura que pode dar alguma garantia aos estados mais pequenos de como a UE não será reduzirá a uma perpectiva alemã.

Conseguiremos ser suficientemente racionais e tirar proveito do melhor que a Europa tem sem esquecermos as ligações com os outros continentes? O que se passa na Ucrânia é grave e importante para o nosso futuro, mas já são tantos os países envolvidos que o nosso papel se reduz a estarmos  disponíveis. Quantos estados europeus conhecem ou se preocupam com o sul da África? Quantos estados europeus estão a par dos actos de pirataria, do tráfico de armas e de droga que assolam Cabo Verde e contribuem para a instabilidade de vários estados africanos? Quantos podem alertar a UE para a crise climática como o aumento da aridez, da seca, a deterioração das águas subterrâneas e o aumento dos furacões e das tempestades tropicais naquela região? Não será com certeza a Macedónia do Norte. E aqui regressamos ao livro sobre Damião de Góis e Luiz de Camões. À tal escolha que tem sido repetida e que teremos novamente de fazer. Somos um país europeu ou uma nação atlântica? Será que conseguimos finalmente tirar proveito dessas duas componentes?

Damião de Góis beneficiou do melhor que a Europa tinha, a sua riqueza intelectual, científica, económica, militar, cultural e tecnológica. Não se esqueceu, não criticou a expansão portuguesa em África nem as feitorias no Oriente. Pelo contrário, tinha noção que era isso que lhe abria as portas na Europa. Era isso que o fazia ser ouvido, era isso que também o tornava interessante, diferente dos demais europeus. Olaf Scholz apresentou publicamente a sua visão estratégica para a Europa. O governo português, mais modesto, bem que podia fazer o mesmo. Seria um importante passo no sentido de sermos ouvidos em Bruxelas e de contribuirmos com a nossa parte para a comunidade europeia.