Algures nos anos 80, creio, Lisboa (o país todo) descobriu as delícias dos “croissants”. Casas dedicadas a vendê-los, designadas engenhosamente “croissanteries”, começaram a surgir na capital (e não só), uma, depois duas, depois várias, muitas, dezenas… nelas se vendiam “croissants” de amêndoa, chocolate, ovo, queijo, doce, eu sei lá, de tudo um pouco. Foi uma questão de tempo até o excesso de “croissanteries” acabar com… as “croissanteries”.

Pura e simplesmente, no espaço de poucos anos, desapareceram.

Um economista explicará a coisa com a lei da oferta e da procura. Um gastrónomo lembrará que a comida é assunto sério de mais para se basear em “croissants”. A mim ninguém me tira da cabeça ser mais simples: temos mais olhos que barriga, vivemos no e para o curto prazo, para nós, qualquer galinha, desde que ponha ovos, deve ser explorada ao máximo e depressa.

Somos assim, uns exagerados. Ganhámos o campeonato da Europa “sem saber ler nem escrever”, vá lá, com um bocadinho de sorte, e logo nos quiseram convencer os comentadores da bola e não só que vencer o Mundial eram favas mais ou menos contadas. Só que alguém se esqueceu de as contar, e pronto, lá voltámos ao fado do derrotado.

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Haverá sempre alguém douto para explicar que somos assim porque sofremos de um complexo de inferioridade agudo e qualquer “coisinha” serve para nos elevar ao topo do Mundo. Mas quem mais se eleva mais fundo cai, e sendo inevitável que cairíamos desse altíssimo pedestal a que nos alcandorámos, melhor seria evitar embarcar na montanha-russa das emoções. E não é só no futebol.

Recentemente disseram-nos que somos o alfa e o ómega da inovação, que o nosso ambiente empreendedor pede meças aos melhores, que Lisboa se tornou a meca dos investigadores e das startups de todas as partes; vai-se a ver e somos 32ºs no Mundo, já fomos 31ºs, o que quer isso dizer, afinal somos os piores, certo? Errado. Nem primeiros nem últimos. Nem a cores nem a preto e branco. Nem os melhores nem os piores. Mas vá lá convencermo-nos! Somos de extremos. E acreditamos nos que nos dizem sermos os melhores, como acreditamos quando afirmam sermos os piores, sobretudo se for dito por estrangeiros. Somos estrangeirófilos com orgulho, mas convém não abusar.

Uma das coisas que nos caracteriza e não tem nome é a estranha mania de matarmos as nossas galinhas dos ovos de ouro. Recordo a fábula de Esopo: um agricultor descobriu que a sua galinha tinha posto um ovo de ouro. Vendeu-o no mercado com grande lucro. Todos os dias a galinha punha um ovo e o agricultor podia ter poupado para tempos pós-galinha, criado uma estrutura agro-pecuária produtiva ou investindo em bitcoins. Mas quis ser mais esperto: certo de que a galinha tinha dentro de si um tesouro inesgotável, matou-a, abriu-a, para descobrir que, no que tocava às entranhas era igual às outras todas.

Foi-se tudo.

Também nós, portugueses, tivemos várias galinhas dos ovos de ouro. As Molucas e as especiarias, Minas Gerais e o ouro, as colónias e as matérias-primas, a Europa e os fundos (tecnicamente ainda temos). E agora, claro, o Turismo.

Ora o Turismo faz lembrar um bocadinho as “croissanteries”, não faz? Como não somos ingénuos como o agricultor da fábula não matamos as galinhas para encontrar a fonte do tesouro, limitamo-nos a explorá-las ao máximo, para tirar delas tão depressa quanto possível toda a riqueza que possam produzir. Vai dar ao mesmo. Matamo-la. Vamos matá-la.

Já é mais caro ter casa em Lisboa do que em Berlim. Num espaço de tempo curto, desatámos  a pedir preços absurdos pelas nossas casas. E a alugá-las a valores ainda mais absurdos, sobretudo tendo em conta o pormenor do poder de compra. Entre alojamento local e rendas incomportáveis, qualquer dia os turistas que visitam Lisboa terão a grata surpresa de só encontrar turistas (e residentes estrangeiros ricos). “E os locais”? Fecham-se negócios antigos (o amigo economista explica), abrem-se restaurantes e hotéis aos pontapés. Dezenas de “croissanteries”, milhares de hotéis, barzinhos, restaurantes de petiscos. E quando os turistas começarem a vir menos, desencorajados pelos preços várias vezes superiores aos de países vizinhos (Norte de África… Espanha?), o que sucederá aos hotéis, barzinhos e restaurantes?

Mas os turistas alguma vez deixarão de vir? Já começam a vir menos, parece

Esta crónica não faz a exegese da síndrome da “croissanterie”, que tem muitas causas e muitos efeitos. Pode e deve investigar-se a razão da pouca produtividade da nossa economia, do baixo (e a baixar) índice de poupança, a excessiva dependência do turismo e da construção, pode e deve apontar-se a depredação de abutres que tanto mal causaram ao país nos últimos anos, revelados em processos mediáticos mais ou menos concluídos.

Maior produtividade, inovação e criatividade, menos corrupção e nepotismo; menos “croissanteries”. Podem e devem analisar-se as causas, reflectir-se nas consequências. Mas provavelmente já ninguém ressuscita esta galinha. Provavelmente, assistiremos ao encerramento de umas centenas de croissant… perdão, de hotéis, de restaurantezinhos, de “boutiques para turistas”, e até de tuk-tuks, que não podendo encerrar, serão encostados.

Este país pode ser para Turistas. Mas é cada vez menos para os portugueses. Por sua culpa, por culpa nossa, que não perdemos o hábito de matar as nossas galinhas dos ovos de ouro.

PS. Ah, tinha-me esquecido, o crédito a particulares aumentou 22% em Maio. Estamos, parece, a chegar aos níveis anteriores à crise. Que bom. Afinal, que mal tem vivermos expostos aos males da globalização e da concorrência, se há de novo uma bolha só nossa?