França está a ferro e fogo com a morte de Nahel M., de 17 anos, francês de terceira geração e de ascendência argelina, abatido por um polícia, em Nanterres. Nada disto é novo. De 1981, em Lyon, à tragédia de 2005, em Paris. E sempre com as mesmas respostas diante do horror: sublevação popular e carga policial; mortos e feridos; destruição de propriedade; cisão social; aproveitamento político. Não será novo, mas é pior – ainda que não venha a ser decretado Estado de Emergência durante três semanas como em 2005.

É pior porque também a República está a ferro e fogo, depois de ter sido sucessivamente atacada pela própria classe política, ao longo de anos, com a destruição dos princípios democráticos e liberais em benefício do poder partidário e pessoal e da agenda neoliberal. A extrema-direita e a extrema-esquerda, esta na sua expressão Woke, atiram combustível às chamas. A polarização é alarmante. Os factos, no entanto, permanecem: dos banlieues ou bairros sociais, renomeados «bairros prioritários» – o que não deixa de ser irónico já que ocupam o último lugar desde o rendimento à inserção social -, emergem os franceses, alguns de terceira e quarta geração, que a França não integrou, em vagas de revoltosa destruição.

São cerca de cinco milhões os habitantes deste mundo paralelo que vive noutro mapa estatístico, desde os índices de pobreza infantil aos do desemprego – dados do Insee, o equivalente francês ao nosso INS. Quase o triplo da pobreza infantil e do desemprego. O que não obsta ao sucesso parcial do gigantesco investimento económico feito nestes bairros: cerca de 33% dos seus residentes habita o bairro durante um período não superior a 10 anos. O número de estudantes universitários oriundos dos bairros ou de fora dos bairros é aproximado. O elevador social funciona. Imperfeitamente, porém, funciona. O que não funciona são estes bairros. Não funciona o policiamento – verifique-se o número de polícias assassinados; não funcionam as escolas; nem os centros de apoio culturais ou outros.

Não há uma só razão para esta porta aberta ao caos, há uma constelação de razões. Da pobreza à guetização e ao urbanismo. Do elevado número de famílias monoparentais nos bairros, quase 30%, à ausência de expectativas. Da perda do sentimento de gravitas à perda do significado de «ser» e da ideia de «valor». Da horizontalização cultural à horizontalização política. Da sujeição do «nós» ao eu, e o transversal narcisismo.

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Nestes guetos, paredes meias, vive o século XXI, tecnológico, a espreitar a revolução da IA, da computação quântica e a caminho das colonização das estrelas, e o século XII, com um Estado religioso e uma sociedade classista e à beira do analfabetismo, no que ambos têm de pior: a delinquência do tráfico de drogas ao serviço da ideia de enriquecimento e poder simbólicos da juventude, colunas de som, iphone, ténis, brincos, camisolas de marca, carros; e o islamismo radical que sujeita a mulher ao homem destituindo-a do seu lugar legal e aprisiona os rapazes num círculo vicioso de insularidade cultural e social. Entalados entre ambos estão os 33% que deles saem para não regressar. As histórias de sucesso.

Os banlieues são, eles próprios, o inimigo. O inimigo de quem neles habita tanto quanto de quem neles trabalha, como de quem deles jamais se aproximará. Se não forem transformados ao ponto de serem eliminados da paisagem social, ela não mudará.

(O trabalho feito em Le Plessis Robinson será um apêndice, mas é exemplar. Recomendo que vejam.)