Dos muitos desafios que já se apresentaram em minha vida, lidar de perto com o Alzheimer era algo que ainda não havia acontecido. Até então, eu tinha sido poupada. Minha avó foi até os 92 anos com sua saúde impecável — nem a glicemia parecia se incomodar com o meio quilo de goiabada que ela comia todas as semanas — tudo funcionava, nenhum trabalho para a família. Corpo são, mente sã.
Mas, quando o Alzheimer chegou, não houve muito tempo para discussão ou para que nos preparássemos para o que estava se aproximando. Até houve uma chegada sorrateira da doença. Coisas como uma história que ela contava duas vezes, um conhecido do qual não se lembrava automaticamente. Nada que parecesse muito imperdoável em alguém que já ultrapassara a linha dos 90. Mas essa timidez do Alzheimer durou pouco.
Perguntas idênticas feitas em sequência. Pessoas próximas que, de repente, se tornavam desconhecidas. Perda de apetite. Histórias que se repetiam diariamente. Histórias inventadas. Apatia. Confusão. Comportamentos incompatíveis com a pessoa que conhecemos. Agressividade. Perda de bom senso. Uma verdadeira avalanche ao longo dos meses.
Mas, de repente, lá está ela. No meio de toda aquela confusão, de toda aquela angústia, emerge minha avó. A mesma de antes. O mesmo carinho, o mesmo olhar, a mesma alegria. De repente, surgem comentários pertinentes, lembranças sólidas, nomes corretos. É quase como poder matar as saudades por alguns instantes. Às vezes dura uma hora — até mais. Outras dura apenas por alguns minutos. Tudo bem. Ela está ali.
Mas dentro de toda a dor desse processo, ainda foi possível descobrir uma beleza. Não sei bem se a generosidade é do Alzheimer ou se é da minha avó. Mas o fato é que ela não se esquece das más notícias. Mas se esquece das boas. Num primeiro momento isso pode parecer ruim, mas venho descobrindo que não é.
Minha avó nunca se esqueceu que eu me divorciei. Minha avó nunca se esqueceu que meu pai morreu. Ela nunca nos obrigou a dar essas notícias duas vezes. Nunca nos sujeitou a mais uma crise de choro pela perda do genro, nem a mais uma sabatina sobre uma separação inesperada. Ela se lembra. Ela aceitou. Ela permitiu que nós pudéssemos seguir em frente.
Por outro lado, ela se esquece de quase todas as boas notícias. E quando contamos cada uma delas outra vez, ela bate palmas, faz festa, comemora, nos abraça. É assim com minha aprovação no doutorado. Com os empregos novos (já não tão novos) dos meus irmãos. Com meu novo casamento. Com minha indicação ao prémio Jabuti. Com minha casa nova. Com o crescimento dos bisnetos. Ela sempre se surpreende, sempre nos agradece, sempre diz para fazermos um brinde com sumo de laranja.
Em algum lugar de tanta angústia, há um espaço para celebrar. Em algum lugar de tanta confusão e tanta desconexão, há uma essência que não se abala. Em algum lugar desse luto em vida, há uma força enorme que segue querendo comemorar. Em algum lugar da afronta do Alzheimer, há uma generosidade que não nos obriga a reviver dores pregressas (talvez porque já bastem as presentes), mas que nos permite viver em dobro, em triplo, quiçá em quadruplo, cada uma das alegrias que a vida ainda nos reserva.