Durante a última década fui exposta repetidamente ao estudo da “teoria crítica”. Com base no pós-modernismo, nas suas diversas variantes, há uma premissa anexada a este tipo de estudos que sempre tive dificuldade em compreender: não sendo eu sujeito portador de determinada identidade “marginalizada”, não tenho legitimidade para a debater. Só a experiência de pertencer a determinado grupo me poderia dar autoridade para o fazer. Por exemplo: só poderia falar de pós-colonialismo se a minha origem fosse de um país que tivesse sido colonizado (independentemente de não pertencer à geração que sofreu os abusos da colonização). Ainda contestei. Afinal, o contexto em que estava naquele momento, fazia de mim uma “minoria”: imigrante e mulher. Recebi a resposta seca de que pertencia, claramente, à “estrutura de poder”. Sou branca e estava a frequentar estudos avançados numa universidade norte-americana. Para a escola pós-moderna a minha experiência não tinha qualquer valor.

Havia alguma coisa de absurdo – do meu ponto de vista – nesta ideia pós-moderna de celebrar a diversidade, mas a diversidade só de alguns, e de “desconstruir” metanarrativas que supostamente nos oprimiam (ou pelo menos influenciavam de forma determinante e subversiva o nosso pensamento) sem termos consciência disso. A “teoria crítica”, como lhe chamavam, era uma abordagem desafiadora dos meus paradigmas, o que é sempre interessante para quem tem gosto por matérias teórico-filosóficas como eu. Permitia-me olhar o mundo de outra perspetiva. Não era a minha, isso ficou rapidamente claro, mas, ao contrário dos pós-modernos, sempre me interessou ver o mundo pelo olhar dos outros. Esta perspetiva parecia-me tão distante da realidade que se tornava inofensiva. Além disso, estas matérias (umas de caráter obrigatório, outras escolhidas por mim) estavam inseridas num vasto currículo plural que me permitiu ter a ilusão que se tratava apenas de mais uma abordagem entre muitas. Enganei-me.

Os tempos mudaram debaixo do meu nariz. A intransigência daqueles que defendiam as teorias críticas nos bancos da universidade, insistindo que existia um poder opressor difuso que, através das mais diversas formas de linguagem, manipulava o discurso para perpetuar o poder, reproduzindo comportamentos que marginalizavam um conjunto de grupos – de natureza étnica, de género, religiosa, e por aí fora – chegou ao ativismo político, exatamente com o mesmo dogmatismo que encontrei na universidade. E, sem perceber bem como, passei a ouvir com frequência aquele discurso na voz de políticos, intelectuais públicos e ativistas. E comecei a ver pessoas comuns a repetirem ideias e comportamentos fundados nas teorias pós-modernas.

Foi recentemente publicado em versão portuguesa um livro que explica como se deu esta transformação. Da autoria de Helen Pluckrose e James Lindsay, Teorias Cínicas traça a história da transição do pós-modernismo académico para o pós-modernismo ativista. O processo teve três fases: a primeira, entre os anos 1960 e os anos 1980, em que o pós-modernismo era uma metodologia de desconstrução dos discursos mainstream. Ainda que difíceis de perceber, teóricos como Michel Foucault e Jean-François Lyotard deram à academia referências de questionamento. A segunda fase, inaugurada pelo famoso ensaio de Edward Said, Orientalismo (1978), constituiu-se na aplicação do pós-modernismo a diversas matérias como os estudos do pós-colonialismo, racismo e feminismo entre outros. Nesta fase a “vítima” da estrutura ganha forma e o “opressor” é o homem branco que, no seu privilégio, reproduz o discurso e os sistemas de opressão. A terceira fase, já nos anos 2010, transforma o discurso pós-moderno na tese da “Justiça Social”, um dogma reproduzido por ativistas políticos. A partir dessa altura, “os estudos de Justiça Social não se limitam meramente a defender o princípio do conhecimento pós-moderno – que a verdade objetiva não existe e o conhecimento é socialmente construído e um produto da cultura – e o princípio político pós-moderno – que a sociedade é construída através do conhecimento pela linguagem e discursos, que se encarregam de manter os dominantes em posição de poder e sobre os oprimidos. Estes princípios são tratados como A Verdade. Não se toleram divergências e espera-se que todos concordem ou sejam “cancelados”. Vemos isso na obsessão de quem pode produzir conhecimento e como e no desejo explícito de “infetar” tantas outras disciplinas quanto possível com métodos da “Justiça Social.” Por outras palavras, um universo de conhecimento paralelo onde pré-existem “bons” e “maus”, num sistema que não corresponde à realidade factual, tomou conta de um conjunto de instituições.

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Daí que a Justiça Social passasse dos muros das universidades para a sociedade foi um pulinho. Os autores explicam esta passagem de duas formas. As universidades são centro de conhecimento por onde já passou uma geração desde que a Justiça Social se tornou o discurso dominante e essa geração está agora no mercado de trabalho e na cidadania ativa, levando consigo os valores que interiorizou. Também através do ativismo social. Os professores que ensinam pós-modernismo e os seus derivados são também ativistas sociais que encontram lugar em diversas organizações pré-existentes da sociedade civil, continuando a sua mensagem especialmente através das redes sociais – estas sim, reprodutoras muito rápidas destes conteúdos.

Eu acrescentaria mais duas razões que não são descritas no livro e me parecem igualmente fundamentais. A primeira, é que não foi por acaso que a Justiça Social se espalhou como um fósforo na sociedade norte-americana. Esta é particularmente vulnerável a este tipo de discurso, por razões históricas, leia-se um racismo endémico que muitas e muitas pessoas de bem querem ver eliminado. Também por haver um conjunto de condições no passado que propiciam este encontro social dogmático: a tradição da counter culture e de um politicamente correto por demais castrador (tornando a autocensura uma prática corrente para quem quer estar integrado no “lado bom” da sociedade) que tem crescido exponencialmente desde o final dos anos 1960.

Segundo, e talvez mais importante, a Justiça Social penetrou nas elites políticas e na comunicação social de uma forma paulatina, mas contundente. A partir dos anos 1990, os decisores à esquerda deixaram de ter uma causa. Não havia muito mais que fazer pelos mais desfavorecidos numa América que parecia ter uma classe média larga e sólida. A opção foi virarem-se para as chamadas “causas fraturantes” e para a defesa das minorias. Primeiro, através de uma visão liberal. Mas aos poucos, e pela influência dos agentes apontados acima, muitos foram-se radicalizando e encrostando o discurso da Justiça Social. Não admira, pois, que o Partido Democrata esteja dividido. E que o Partido Republicano tenha respondido com uma espécie de contrarrevolução ultraconservadora relativamente ao que vê como uma “tirania da minoria”.

Ora, o liberalismo sempre foi a ideologia que orientou as questões relacionadas com a desigualdade e a justiça social (como nome comum e não ideologia). Mas o liberalismo tem um conjunto de características que o tornam vulnerável a outras ideologias mais autoritárias e dogmáticas: o contínuo individualismo-universalismo é impessoal e não trata os desfavorecidos como grupos sociais; aponta os seus próprios defeitos através do debate e da tolerância. A Justiça Social percebeu estas fragilidades e posicionou-se para as explorar.

O resultado tem sido triplamente nocivo: por um lado, a manipulação do cidadão comum que por se rever nas causas (e bem, porque a maioria delas são justas) acaba por aderir a uma ideologia que não tem nada de livre e democrático; por outro, a sua entrada no mainstream norte-americano contribuiu (está longe de ser a única causa) para a situação de radicalização e polarização que vemos na América; e, finalmente, devido ao seu dogmatismo não há lugar a contestações: só para reescrever a história, derrubar estátuas, ofender os “opressores”, transformar higienicamente a linguagem, despedir ou punir quem não defende a mesma cartilha e, principalmente, congelar um debate que é urgente para resolver problemas reais, de pessoas reais, que não podem esperar por uma viragem social absoluta – que, esperemos, nunca venha a acontecer nos moldes propostos pela Justiça Social. Seria uma catástrofe, como quando, no passado, se tentou implementar outras ideologias utópicas.

A ideologia da Justiça Social é autoritária, mina o Estado de Direito. É profundamente dogmática e, uma vez instalada, é muito difícil de combater. Desvirtua o debate e empobrece as soluções possíveis. Proíbe que sejamos contra a exclusão das minorias – seja elas quais forem. Porque a cor da nossa pele e a nossa experiência pessoal põem-nos no lugar do opressor ou da vítima. E não há forma de transformar este estatuto.

A sociedade norte-americana modificou-se profundamente por ação destes princípios. E, escusado será dizer, não foi para melhor. Parecia, para mim que lá estive durante essa transformação, uma possibilidade tão absurda que nem parei para pensar se seria possível. Mas foi. Queremos verdadeiramente viver à mercê destas ideias? Eu não quero, até porque vi o efeito tremendo que podem ter. A Europa também tem muitas vulnerabilidades, diferentes das americanas, a este tipo de pensamento. Ainda vamos a tempo de tentar que esta minoria, tudo menos silenciosa, tome conta de todas as sociedades ocidentais?