Entra hoje em vigor, em França, a lei que transpõe a mais recente directiva europeia sobre os direitos de autor. Poderia ser apenas mais uma quinta-feira, mas é um momento-chave após o qual nada ficará como dantes. A partir de agora, gigantes tecnológicos como a Google serão legalmente responsabilizados pela compensação financeira dos órgãos de comunicação social cujos conteúdos noticiosos reproduzirem. Começou em França, alastrará pelo continente europeu. E é de elementar justiça. Repare-se: em 2017, em Portugal, a publicidade digital gerou receitas de 134 milhões de euros, dos quais 100 milhões (75% do total) foram directamente para a Google, Facebook e demais gigantes tecnológicos (que não produzem conteúdos), e apenas 34 milhões (25%) ficaram no nosso país – conferir dados aqui, no gráfico 4. Assim, depois de anos a apropriar-se dos conteúdos dos jornais para gerar tráfego nos seus serviços (como o Google News), e assim reduzindo as receitas dos próprios jornais, a Google passará a ter de compensar quem efectivamente é autor desses conteúdos.
Problema: a Google não quer pagar essa compensação e impôs um braço-de-ferro. Ou os jornais (e as autoridades públicas) aceitam que, apesar da nova lei, a Google não pagará por esses conteúdos, e tudo continua como dantes. Ou a Google, para cumprir a nova lei, deixará de difundir esses conteúdos noticiosos nos seus vários serviços, reduzindo imensamente o fluxo de tráfego dos jornais na internet e levando-os à ruína financeira – porque o tráfego oriundo do motor de pesquisa da Google (uma espécie de monopólio) é esmagador e indispensável para a viabilidade dos jornais online. Algo semelhante foi, há uns anos, aplicado em Espanha e a experiência está a gerar uma forte apreensão entre os editores. A imprensa francesa e jornalistas de toda a Europa estão em estado de alarme: recomeça hoje uma batalha crucial pela sua sobrevivência.
Recorde-se que a entrada em vigor desta lei, em França, resulta de um participado debate e longo processo democrático. A directiva europeia em causa foi adoptada a 26 de Março, após um escrutínio apertado e uma atenção mediática anormalmente intensa. A sua transposição para a legislação de cada Estado-membro está a cumprir os trâmites processuais normais e, em França, a lei que daí já resultou foi aprovada por unanimidade – da esquerda à direita. Outros países europeus farão um percurso similar, entre os quais Portugal. Ora, a Google ambiciona, legitimamente, estancar a situação em França antes que esta se alastre internacionalmente e se torne incontrolável e prejudicial aos seus interesses. Mas, importa que se diga, o ponto de partida é ilegítimo: os interesses da Google assentam numa posição que é imoral (apropriação de propriedade intelectual para gerar receitas próprias) e, agora, contrária ao espírito da lei.
O culminar desta batalha definirá o futuro da imprensa e terá implicações para a qualidade das nossas democracias europeias. Assinalá-lo é dizer o óbvio. Cada vez mais, nestes anos em que a desinformação circula e contamina o espaço público, se tornou essencial a existência de fontes fidedignas de informação e de investigação jornalística no escrutínio do poder político. Mais ainda em Portugal, onde vários jornais e grupos de comunicação social acumulam prejuízos elevados e dívidas incomportáveis. E onde, por desespero ou vassalagem, não falta quem proponha subsídios estatais ou outras propostas igualmente danosas para a independência jornalística. Afinal, uma solução simples poderá estar no horizonte: deixar que os leitores decidam livremente o que querem consumir e ressarcir quem tiver produzido esses conteúdos pelo seu trabalho – suspendendo a actual apropriação da Google dessas receitas. Dir-me-ão que não resolverá todos os males, o que será verdade. Mas será um bom início de conversa: dificilmente se conceberá um mecanismo mais justo do que este.
O culminar desta batalha definirá também, daqui para a frente, o relacionamento das democracias liberais europeias com os monopólios iliberais de empresas-Estado como a Google, cujo poder financeiro e influência global elevaram a donos-disto-tudo – acima do escrutínio democrático, acima da lei e acima dos limites éticos. Repito: monopólios iliberais de empresas-Estado como a Google. Tornou-se urgente resgatar para o debate público uma distinção fundamental: distinguir as posições pro-market (próprias das democracias liberais) das posições pro-business — ou seja, neste caso, dizer “sim” ao mercado livre e concorrencial, e dizer “não” aos monopólios (mesmo que privados) com poderes equiparáveis a Estados e com interesses conflituantes com o bem comum. Se as “Googles” quiserem ser inimigas da liberdade, então enfrentá-las será um dos grandes combates do nosso tempo.