A guerra prossegue há três meses sem mais objectivos aparentes do que os do primeiro dia: a «invasão» da Rússia e a «defesa» da Ucrânia. Esta última foi rapidamente apoiada à distância com armas e dinheiro fornecidos pela NATO em nome da solidariedade mas sem esta ir, contudo, ao ponto de levar a Ucrânia para a dita NATO, possivelmente com receio que a Rússia cumprisse a ameaça da bomba nuclear, conforme anunciou desde o primeiro minuto!

Pensasse ele o que pensasse após a usurpação da Crimeia em 2014, Putin nunca chegou a formular quaisquer objectivos precisos quando invadiu a Ucrânia em Fevereiro de 2022 nem declarou os seus motivos e objectivos concretos. O ataque da Rússia tão pouco se revestiu até agora de quaisquer valores ideológicos: nem direita nem esquerda; nem democracia nem ditadura. A única bandeira agitada é, de ambos os lados, o sentimento patriótico, seja lá o que isso for concretamente. Na prática, trata-se de a Rússia continuar a apropriar-se de territórios ucranianos a fim de Putin mobilizar o ego russo enquanto a Ucrânia tenta impedir que isso aconteça!

Com efeito, não só a movimentação do exército russo se mostrou errática desde o início, durante o qual Putin ainda teve o auxílio armado da Bielorússia, como não foi além da destruição sistemática das cidades de Kiev e Cracóvia das quais não logrou contudo apoderar-se assim como da grande maioria das inúmeras localidades ucranianas alvejadas. Com excepção das zonas que a Rússia já controlava, como a Crimeia e a costa marítima, bem como duas cidades importantes, as tropas russas limitaram-se a bombardear até ao último prédio dos centros urbanos da Ucrânia oriental no seguimento da intervenção política russa de 2014 e da ocupação da Crimeia.

Em suma, aquilo que Putin tem feito sustentado pelos «siloviki» é pura propaganda destinada a captar o apoio da massa da população russa, a qual parece não ter saído até hoje do vazio ideológico deixado pela queda do regime soviético e pela emergência de um patriotismo tanto mais exacerbado quanto isolado e insatisfeito, para não dizer derrotista… Desde então, a sociedade russo não foi capaz de criar efectivas representações partidárias!

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O gigantesco desfile militar de Maio em Moscovo, entremeado de bandeiras vermelhas com a foice e o martelo, ilustra bem o carácter artificial da propaganda nacionalista do regime, assim como a frustração patriótica dos cidadãos russos perante a riqueza comparativa do «mundo ocidental», ao qual a Ucrânia e outros países do antigo império soviético têm vindo a aderir, cerceando assim as aspirações imperiais de uma efectiva elite… se é que existe.

Repito: não há aqui, como de resto também não há na Ucrânia, por motivos sócio-culturais idênticos, qualquer ideologia propriamente dita que vá além da língua e da religião natais… Quanto às classificações ideológicas que actualmente florescem, como em Portugal, onde os comentadores se deixam aprisionar pelos «slogans» de «direita» e «esquerda», é sabido há muito tempo que a grande maioria dos portugueses, quando revela a sua «ideologia», o que já de si não é fácil, se classifica nos lugares centrais entre as tais «esquerda» e «direita»… Pretender, pois, como uma comentadora do «Público», que tanto a Rússia como a Ucrânia são de «direita», não acrescenta rigorosamente nada à guerra entre os dois países, pelo contrário.

O único factor em jogo nesta guerra é a desigual dimensão entre o atacante e a vítima. Muito mais importante do que as convicções ideológicas dos envolvidos é, obviamente, a ressurreição da NATO (a OTAN da qual Portugal é membro desde a sua criação em 1949), a qual conferiu ao conflito uma dimensão internacional que só não se consumou até agora com a derrota da Rússia devido à ameaça nuclear. Assim se politizou à escala internacional mais uma dessas terríveis guerrilhas que têm tido lugar fora da Europa!

Entre o improvável resultado militar e o pouco entusiasmo do recente encontro diplomático entre o presidente da Ucrânia, efectivo herói da resistência ao «urso branco», e o primeiro-ministro português, confirmou-se na semana passada que qualquer dos dois políticos presentes pouco ou nada tinham a dizer e muito menos a dar um ao outro. Visivelmente, António Costa estava mais preocupado com as baixas perspectivas dos próximos anos do que com a guerra mundial!

Enquanto durar, a guerra é má para todos e, quando acabar, isso pouco ou nada acrescentará à política de cada um, seja ela de «direita» ou de «esquerda», como se isso tivesse muito conteúdo e eficácia. Por que razão? Porque as «ideologias» do começo do XXI estão completamente desgastadas e não passam de «slogans» atirados à cabeça dos concorrentes a qualquer forma de poder cada vez mais fugidio e cada vez mais parecido com os seus competidores. A guerra em curso continuará a ser muito penosa mas não creio que mude o futuro: não tem, pois, razão de ser.