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Putin Inaugurates Monument To Alexander Nevsky And Heroes Of Lake Peipus Battle
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O Patriarca Cirilo I, líder da Igreja Ortodoxa Russa, é um dos maiores aliados de Vladimir Putin

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O Patriarca Cirilo I, líder da Igreja Ortodoxa Russa, é um dos maiores aliados de Vladimir Putin

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Em nome de Putin, do Filho e do Espírito Santo. Como a Igreja Ortodoxa russa ajuda na guerra

Em vez de apelar à paz, o Patriarca de Moscovo apresenta argumentos históricos e religiosos para legitimar a invasão da Ucrânia. A história da Igreja Ortodoxa Russa, uma arma ao serviço de Putin.

Para o universo cristão, foi uma resposta inesperada. Depois de interpelado no sentido de intervir junto de Vladimir Putin, servindo de intermediário para um entendimento entre a Rússia e a Ucrânia, o Patriarca Cirilo I, líder da Igreja Ortodoxa Russa e um dos homens mais influentes da esfera de poder do Kremlin, recusou atuar em nome da paz. A esperança, acalentada por muitos, de que uma negociação entre Cirilo I e o Papa Francisco pudesse acelerar um acordo de paz esfumou-se quando o Patriarca de Moscovo usou argumentos religiosos para legitimar a invasão da Ucrânia pela Rússia.

A possibilidade de uma resolução pacífica da guerra entre a Rússia e a Ucrânia parece mais longínqua, agora que Cirilo I — a única figura simultaneamente próxima de Putin e dos esforços de paz do Ocidente, por via da sua ligação ao Papa Francisco — se recusou a colaborar. A nega de Cirilo I está abrir brechas na unidade da Igreja Ortodoxa Russa: recentemente, mais de 150 clérigos ortodoxos russos publicaram uma carta aberta à revelia do Patriarca apelando ao fim imediato da guerra.

Apesar das duras críticas de que está a ser alvo por todo o mundo, o Patriarca Cirilo I, influente líder espiritual de 90 milhões de russos e instrumento de poder para o Kremlin, não recua na sua posição. Pelo contrário, o Patriarca de Moscovo tem oferecido a Vladimir Putin todo o tipo de argumentos históricos e religiosos para legitimar e sustentar a invasão da Ucrânia. Recuando mais de mil anos até aos primórdios da Rússia, Cirilo I defende que ucranianos e russos são um único povo e que é o Ocidente que quer semear a divisão na região, patrocinando um colapso moral da sociedade que se traduz na proliferação de paradas do orgulho gay na Ucrânia.

Russian President Putin visits New Jerusalem Monastery in Moscow Region

Vladimir Putin aparece frequentemente ao lado do Patriarca Cirilo I em cerimónias religiosas. A identidade ortodoxa é uma ferramenta que permite a Putin assumir-se como defensor da "Santa Rússia"

Valery Sharifulin/TASS

Apesar de não ter sido assim durante a União Soviética, hoje em dia o Kremlin e o Patriarcado de Moscovo estão unidos. Putin adotou um discurso conservador, de defesa dos valores tradicionais, apoiou-se na grande implantação social da Igreja Ortodoxa para difundir a sua narrativa e aproveitou todo o contexto histórico e social do cristianismo ortodoxo na Rússia para se declarar como o grande defensor da civilização russa contra o Ocidente. Em contrapartida por emprestar a sua história e influência social a Putin, o Patriarca de Moscovo (um ex-informador do KGB) e toda a hierarquia da Igreja Ortodoxa Russa beneficiam de um estatuto sem igual no regime de Moscovo.

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De facto, para compreender verdadeiramente como a Igreja Ortodoxa Russa se tornou numa peça-chave do regime de Putin, legitimando as suas pretensões imperialistas ao atuar como braço evangelizador ao serviço da difusão da narrativa oficial do Kremlin, é necessário recuar vários séculos e conhecer uma personagem central na história tanto da Rússia como da Ucrânia: o príncipe Vladimir I.

A Igreja Ortodoxa e o “povo único” da Rússia

No dia 28 de julho de 2015, uma terça-feira, o Kremlin de Moscovo vestiu-se de gala. O motivo não era de somenos: o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, preparava-se para receber no palácio presidencial moscovita o Patriarca Cirilo I, líder máximo da Igreja Ortodoxa Russa, a mais poderosa instituição russa além da esfera política de Putin. Segundo o calendário juliano (anterior à reforma do calendário feita por Gregório XIII que hoje é usada em praticamente todo o planeta), que os ortodoxos ainda seguem para as suas celebrações religiosas, aquela terça-feira representava na verdade o dia 15 de julho de 2015 — dia em que se completavam exatamente mil anos da morte do príncipe Vladimir I, o pai do Cristianismo na Rússia e o fundador daquilo a que hoje o regime de Vladimir Putin chama de “povo único”, e por isso indivisível, da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia.

No discurso que fez perante os líderes eclesiásticos ortodoxos, os representantes das outras religiões e os vários dignitários presentes naquele dia no Kremlin, Vladimir Putin não poupou nos elogios ao ancestral com quem partilha o nome. “É impossível sobrestimar a importância deste acontecimento”, assinalou Putin, sublinhando que o 1000.º aniversário da morte de Vladimir I representava uma “oportunidade para compreender a escala da sua personalidade como um formidável criador da Rússia”. Mais: “O príncipe Vladimir estava destinado a tornar-se um grande estadista. A sua escolha foi discernida, extremamente responsável e tornou-se na fonte do desenvolvimento da Rússia enquanto país e civilização únicos. A adoção do Cristianismo foi baseada no profundo amor do príncipe Vladimir pela sua pátria, na sua séria reflexão espiritual e na sua busca por uma base comum que pudesse unir os povos e as terras dispersas.” Por fim: “Ao colocar um fim aos feudos e ao repelir os inimigos externos, o príncipe Vladimir lançou a criação de um único povo russo; na verdade, ele trilhou o caminho rumo a um forte Estado russo centralizado.”

Não foi a primeira vez que Vladimir Putin se referiu publicamente à história da Rússia cristã e, em particular, ao príncipe Vladimir I para apresentar os povos eslavos do leste como uma única nação histórica. Na verdade, apenas um ano antes daquela gala no Kremlin, Putin tinha recorrido ao argumento do povo único para justificar a invasão e anexação da Crimeia, a península no Mar Negro que pertence à Ucrânia, mas que se encontra desde 2014 sob controlo russo. “Tudo na Crimeia fala da nossa história partilhada e orgulho. É o lugar da antiga Quersoneso, onde o príncipe Vladimir foi batizado. O seu feito espiritual de adotar a Ortodoxia predeterminou a base geral da cultura, civilização e valores humanos que unem os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia”, disse na altura.

"A adoção do Cristianismo foi baseada no profundo amor do príncipe Vladimir pela sua pátria, na sua séria reflexão espiritual e na sua busca por uma base comum que pudesse unir os povos e as terras dispersas (...). Ao colocar um fim aos feudos e ao repelir os inimigos externos, o príncipe Vladimir lançou a criação de um único povo russo; na verdade, ele trilhou o caminho rumo a um forte estado russo centralizado."
Vladimir Putin, Presidente da Rússia

Ao longo das últimas duas décadas, Vladimir Putin aproximou-se gradualmente da Igreja Ortodoxa Russa e, hoje, o Kremlin e o Patriarcado são dois aliados inseparáveis. O Presidente russo invoca frequentemente a Igreja, a história do cristianismo e uma série de argumentos de cariz religioso nos seus discursos públicos — e o Patriarca de Moscovo, influente líder espiritual de cerca de 90 milhões de russos (quase dois terços da população do país), é um dos homens-fortes de Putin, tanto no plano da política externa como na política doméstica. A aproximação deu-se pela via ideológica: a apologia dos valores tradicionais da família, a condenação da homossexualidade e do divórcio e, em termos gerais, a defesa de uma moralidade tradicional tem vindo a solidificar os laços entre o regime de Moscovo e o Patriarcado liderado por Cirilo I. Porém, a proximidade entre o Kremlin e os altares ortodoxos é, essencialmente, de uma grande utilidade geopolítica para a política externa de Putin: a adoção da Igreja Ortodoxa Russa como elemento central da identidade russa oferece a Putin o argumentário histórico e cultural de que precisa para justificar a sua ofensiva contra a Ucrânia, o seu controlo sobre a Bielorrússia e as suas intenções imperialistas sobre o leste da Europa.

Com efeito, o Cristianismo Ortodoxo é o cimento que une historicamente os povos russo, bielorruso e ucraniano num único povo com antepassados comuns. Há, pelo menos, mil anos de história em comum para os povos eslavos do leste — e o denominador comum dessa história é a evolução da Igreja Ortodoxa Russa enquanto força dominante na região. Por isso, Putin não tem hesitado em recorrer ao seu aliado Cirilo I para justificar as suas sangrentas ofensivas militares na Ucrânia.

Foi assim em 2014 na Crimeia e voltou a ser assim agora, com a invasão total da Ucrânia. No fatídico discurso que fez três dias antes da invasão — aquele em que afirmou que o país vizinho tinha sido criado pelos bolcheviques —, Putin regressou aos argumentos religiosos. “Desde tempos imemoriais, os povos que viveram no sudoeste do que historicamente tem sido território russo sempre se chamaram russos e cristãos ortodoxos”, disse Putin. Mais à frente, atacou diretamente o regime de Zelensky: “Kiev continua a preparar a destruição da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo (…). As autoridades ucranianas transformaram, cinicamente, a tragédia do cisma num instrumento de política estatal. As autoridades atuais não reagem aos pedidos do povo ucraniano para que sejam abolidas as leis que infringem os direitos dos crentes. Além disso, já foram registadas no Parlamento ucraniano novas leis dirigidas contra os clérigos e os milhões de fiéis da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo.”

Dois dias depois, a menos de 24 horas da invasão da Ucrânia, o Patriarca Cirilo I aproveitou a celebração do Dia do Defensor da Pátria para colocar mais achas na fogueira. Numa mensagem dirigida aos soldados russos, o líder religioso e aliado de Putin afirmou: “Vivemos em tempos de paz, mas sabemos que até em tempos de paz há ameaças. Infelizmente, mesmo neste momento há ameaças — todos estão familiarizados com o que está a acontecer nas fronteiras da nossa pátria. Por isso, penso que os nossos militares não podem ter quaisquer dúvidas de que escolheram um caminho muito certo para as suas vidas.” E acrescentou: “A força das nossas Forças Armadas, o poderio do exército russo, é já uma arma que protege o nosso povo.”

Russian President Vladimir Putin attends Orthodox Churh Conference in Moscow

O Presidente da Rússia tem na Igreja Ortodoxa Russa uma poderosa ferramenta de difusão da sua mensagem

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Quando se pronuncia sobre a sua visão estratégica para o leste da Europa, Vladimir Putin recorre com frequência a argumentos históricos e religiosos para justificar a intervenção militar na Ucrânia — e não hesita em recuar mais de mil anos para repetir, uma e outra vez, que russos, bielorrussos e ucranianos são um só povo, unidos pela fé cristã e pela pertença à Igreja Ortodoxa Russa. No início de toda essa história encontramos a tal personagem central, recordada vezes sem conta: o príncipe Vladimir I, governante eslavo do século X e considerado santo por várias igrejas cristãs.

Mil anos de Vladimir (o Grande) a Vladimir (Putin)

Recuemos ao século VI. Estima-se que tenha sido nessa altura que se fizeram os primeiros registos históricos dos povos que hoje conhecemos como eslavos. Originários do leste, os eslavos protagonizaram movimentos migratórios em três direções: rumo a ocidente, fixando-se em regiões que hoje correspondem a partes da Alemanha, Polónia e República Checa; rumo a sul, para regiões hoje ocupadas pela Hungria e pelos países balcânicos; e rumo a norte, subindo rio Dniepre e fixando-se nas regiões hoje ocupadas pela Ucrânia, Bielorrússia e pela parte ocidental da Rússia. Como explica a Encyclopædia Britannica, estes movimentos levaram à subdivisão dos eslavos em três grupos principais: os eslavos do ocidente (polacos, checos, eslovacos e checos), os eslavos do sul (sérvios, croatas, bósnios, eslovacos, macedónios e montenegrinos) e os eslavos de leste (russos, ucranianos e bielorrussos).

Durante alguns séculos, os povos eslavos desenvolveram-se com grandes diferenças entre si, consoante as geografias em que se fixaram. “Quando os movimentos migratórios terminaram, surgiram entre os eslavos os primeiros rudimentos de organizações estatais, cada uma liderada por um príncipe, com uma tesouraria e uma força de defesa, e com o início da diferenciação de classes”, aponta a citada enciclopédia.

Entre os povos eslavos que habitavam o território do leste encontrava-se o povo Rus — cuja origem não é consensual entre os académicos. Acredita-se que poderia ser um povo descendente dos vikings escandinavos, que rumou a sul pelos rios que desaguavam no mar Báltico, ou então que seria um povo eslavo originário do sudeste do continente europeu. De qualquer modo, o que a história nos conta é que, no século IX, o príncipe Oleg, líder viking que governava a cidade de Novgorod (a sul do que hoje corresponde a São Petersburgo), tomou a cidade de Kiev — à época já uma importante cidade eslava, devido à sua estratégica posição junto ao rio Dniepre, que desagua no Mar Negro — e transferiu para lá a capital do seu território. Entre o final do século IX e o início do século X, Oleg conseguiu unir vários dos povos eslavos que habitavam a região e fundou a Rússia de Kiev, considerado o primeiro grande Estado dos eslavos de leste (e cujo nome é herdado do povo Rus). A ação de Oleg foi decisiva para transformar um conjunto de povos dispersos num verdadeiro Estado soberano — e o príncipe estabeleceu, inclusivamente, acordos comerciais de grande dimensão com o Império Bizantino, com sede em Constantinopla (atual Istambul).

Kremlin And Red Square In Pictures

O príncipe Vladimir, homenageado em estátua em Moscovo, é considerado o pai da Rússia (que inclui, segundo a tradição nacionalista russa, todos os territórios da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia)

NurPhoto via Getty Images

Durante as primeiras décadas da sua existência, a Rússia de Kiev foi um Estado essencialmente marcado pelas tradições religiosas escandinavas. Apesar de essas tradições serem maioritárias, o cristianismo começou a introduzir-se na Rússia de Kiev ainda no século IX, através de missionários enviados rumo a norte, a partir de Constantinopla, a capital do cristianismo oriental. O sucessor de Oleg à frente do reino, Igor de Kiev, morreu em 945, quando o seu filho, Esvetoslau, era ainda menor de idade — motivo pelo qual foi a sua esposa, a princesa Olga, quem ficou à frente da Rússia de Kiev como regente. Olga, hoje considerada santa tanto por católicos como por ortodoxos, foi batizada em 957, já sob influência dos esforços de cristianização levados a cabo pelos missionários bizantinos.

Contudo, seria o neto de Igor e Olga, Vladimir, que ascendeu à liderança da Rússia de Kiev em 980, a introduzir verdadeiramente o cristianismo no grande Estado eslavo do leste.

A grande viragem religiosa da Rússia de Kiev aconteceu em 988, quando o príncipe Vladimir I (ou Vladimir, o Grande) assinou um acordo de cooperação com o imperador Basílio II de Constantinopla, com o objetivo de colocar fim aos conflitos bélicos entre as duas potências. O líder do Império Bizantino prometeu a Vladimir I a mão da sua irmã em casamento; em troca, a Rússia de Kiev tornar-se-ia aliada militar de Constantinopla. Além disso, como parte desse acordo, o cristianismo seria introduzido na Rússia de Kiev. Vladimir I foi batizado em 988 na Crimeia, de modo a poder casar com a irmã do imperador. No mesmo ano, a população da cidade de Kiev foi batizada em massa — e o “Batismo de Kiev” é, ainda hoje, considerado o momento fundador da Rússia cristã contemporânea e recordado frequentemente por Vladimir Putin como o ponto de viragem histórico que une os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrúsia num caminho comum a partir de então.

O Batismo de Kiev, representado num quadro do pintor Klavdiy Lebedev

Domínio Público

A conversão da Rússia de Kiev ao cristianismo mudou decisivamente o panorama religioso da Europa, que já vinha sendo marcado por um gradual afastamento entre a Europa ocidental (que dava primazia à liderança do Papa, em Roma) e a Europa de leste (que reconhecia a primazia dos patriarcas). O grande aumento do número de cristãos no leste aprofundou a divisão. Foi também entre os séculos IX e X que o alfabeto cirílico foi desenvolvido entre os cristãos ortodoxos de fala eslava, o que contribuiu para o afastamento entre os dois mundos cristãos. Esse afastamento culminou em 1054, já depois da morte de Vladimir I, com o Grande Cisma, que dividiu oficialmente o mundo cristão em dois hemisférios: a Igreja Ortodoxa (com o Patriarca de Constantinopla como principal figura) e a Igreja Católica (fiel ao Papa, em Roma).

Sob o reinado de Vladimir e dos seus sucessores, a Igreja Ortodoxa manteve uma presença crescente na Rússia, tornando-se numa força poderosa. Liderada por um metropolita (primeiro de Kiev, depois de Moscovo, até então ainda uma cidade secundária no reino), a Igreja russa manteve-se durante vários séculos sob a jurisdição do Patriarca de Constantinopla. A história da região seguiu, depois, o caminho que se conhece: a Rússia de Kiev caiu no século XIII na sequência da invasão mongol; mais tarde, já no século XV, com o fim do domínio do Império Mongol sobre a região, o grão-príncipe Ivan III restabeleceu a relevância da Rússia na Europa, unificando-a num único país e lançando as bases para o que viria a ser a Rússia dos czares, conquistando território a partir de Moscovo. Durante este período, a Igreja Ortodoxa foi vital para a afirmação da Rússia enquanto potência — e foi justamente durante o século XV que o metropolita russo (nesta altura, já com sede em Moscovo, que se havia convertido na capital do país) foi eleito sem a intervenção de Constantinopla, diretamente pelos bispos russos, o que significou a independência, ou autocefalia, da Igreja russa.

Um século depois, em 1589, já depois de o grão-príncipe Ivan IV (o Terrível) se ter declarado Czar da Rússia e ter aberto as portas ao império que se estenderia até ao século XX, o metropolita ortodoxo de Moscovo, Job, recebeu a dignidade de Patriarca — e passou a ocupar o quinto lugar na ordem dos patriarcados da Igreja Ortodoxa, a seguir a Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.

A Igreja Ortodoxa Russa, agora independente e muito influente no plano social e político da Rússia czarista, manteve-se sob a liderança de sucessivos patriarcas até ao século XVIII. A organização viveria uma transformação radical em 1721, quando o czar Pedro I (o Grande) se proclamou imperador e deu início ao Império Russo. Se, até então, a Igreja Ortodoxa Russa era liderada pelo Patriarca de Moscovo, a partir daí o imperador quis acabar com a influência eclesiástica externa no regime político de Moscovo e cessou a autonomia da Igreja em relação ao Estado. Pedro, o Grande destituiu o Patriarca e criou um Santo Sínodo, um organismo dirigido por um leigo, para governar a Igreja a partir do Estado. Numa análise recente ao Observador, o jornalista José Milhazes, especialista na história e política da Rússia, descreveu esse período como um clima de “promiscuidade e total ausência de separação entre Igreja e Estado”, uma vez que a Igreja estava transformada num “ministério” do governo imperial.

A promiscuidade total entre a Igreja Ortodoxa e o Império Russo perdurou até 1917. A Igreja viu na revolução russa e na mudança de regime político a oportunidade para recuperar o seu antigo modelo de governação por um Patriarca e, nesse ano, elegeu Tikhon como Patriarca de Moscovo. Mas o consulado de Tikhon não durou muito tempo. Por recusar cooperar com o governo comunista, de doutrina ateísta, que procurava nacionalizar a Igreja, tornou-se um alvo do poder soviético. No início da década de 1920, um grupo separatista dentro da Igreja Ortodoxa — a Igreja Renovada, apoiada pelo governo soviético — separou-se da Igreja liderada pelo Patriarca Tikhon, reestabeleceu o Santo Sínodo como forma de governação interna da Igreja e submeteu-se ao governo comunista. Afastado, Tikhon acabaria por morrer em 1925 em circunstâncias nebulosas.

A partir de 2000, já com a Rússia sob a liderança de Vladimir Putin, o peso da Igreja Ortodoxa Russa foi reforçado e a instituição aproximou-se gradualmente do poder político, tornando-se numa ferramenta útil a Putin na sua busca pela recuperação do império perdido.

A submissão da Igreja Ortodoxa ao governo soviético provocou profundas divisões dentro da própria Igreja, que acabou por perder influência. Ao longo do século XX, a instituição atravessou alguns períodos de revivalismo e de perseguição, mas foi já na década de 1980, sob a liderança de Mikhail Gorbachov, que a União Soviética entrou num clima de maior liberdade política e social, o que permitiu à Igreja Ortodoxa Russa regressar ao seu modelo antigo de funcionamento — abrindo paróquias, recuperando os edifícios que haviam sido nacionalizados e reforçando a sua influência social. Em 1991, depois do colapso da União Soviética, com o fim do regime ateísta, a Igreja Ortodoxa encontrou espaço para se voltar a afirmar como elemento central da identidade russa. A partir de 2000, já com a Rússia sob a liderança de Vladimir Putin, o peso da Igreja Ortodoxa Russa foi reforçado e a instituição aproximou-se gradualmente do poder político, tornando-se numa ferramenta útil a Putin na sua busca pela recuperação do império perdido.

Com efeito, Putin soube encontrar nos mil anos de cristianismo ortodoxo na Rússia os argumentos históricos que lhe permitem justificar a ideia de que russos, ucranianos e bielorrussos são um único povo. Há, de facto, um caminho histórico comum entre aqueles povos que pode ser trilhado desde pelo menos o batismo do príncipe Vladimir I. Não é de estranhar, por isso, que Putin recorra tão frequentemente a argumentos de história religiosa para sustentar as suas ações militares. O atual Patriarca de Moscovo, Cirilo I, tomou posse como líder da Igreja Ortodoxa Russa em 2009 e, desde então, tem sido um poderoso aliado de Vladimir Putin na política russa. Resta saber que influência tem Cirilo I sobre Putin — e que intervenção efetiva poderá ter com vista ao fim da guerra na Ucrânia. Para já, todas as expectativas de que o Patriarca de Moscovo poderia intervir a favor da paz parecem ter sido goradas.

Kremlin e Patriarcado alinhados nos fundamentos da guerra

Os analistas da política doméstica e externa da Rússia contemporânea concordam que ao longo das últimas décadas se desenvolveu uma relação de dependência mútua entre o regime de Vladimir Putin e a Igreja Ortodoxa Russa. O Kremlin assegura que a Igreja se mantém poderosa, livre e privilegiada na Rússia; em contrapartida, a Igreja coloca a sua poderosa rede de influência sobre o povo russo ao serviço da mensagem oficial de Moscovo. Em simultâneo, a consagração dos mil anos de história do cristianismo na Rússia como elemento central da construção da identidade cultural e social da região serve tanto o Kremlin como o Patriarcado, que se mantêm na cúpula da esfera de influência política e religiosa da região da antiga Rússia de Kiev — ou seja, a Rússia, a Ucrânia e a Bielorrússia.

No caso da Bielorrússia, tal como o regime político de Lukashenko está plenamente alinhado com Putin, também a Igreja Ortodoxa Bielorrussa está sob jurisdição direta do Patriarca de Moscovo — e não há movimentos significativos a lutar pela independência eclesiástica. O mesmo não se pode dizer da Ucrânia, onde nas últimas décadas surgiram fações separatistas dentro da Igreja Ortodoxa Ucraniana que recusaram a soberania eclesiástica de Moscovo. Estas igrejas autónomas uniram-se e, em 2019, formaram a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, que o Patriarca de Constantinopla (o líder do universo ortodoxo) reconheceu como legítima e independente nesse mesmo ano. Atualmente, coexistem na Ucrânia duas Igrejas Ortodoxas — uma independente e outra fiel a Moscovo. Contudo, a Igreja Ortodoxa Russa continua a considerar todo o território ucraniano como estando sob a sua jurisdição e até cortou todas as relações com Constantinopla, e com o restante mundo ortodoxo, devido ao reconhecimento da independência da Igreja da Ucrânia. Isto significa que o atual conflito entre Rússia e Ucrânia também tem uma tradução religiosa e cultural sem a qual não pode ser lido na sua totalidade.

Cisma do século XXI. Igreja Ortodoxa Russa rompe relações com patriarca de Constantinopla

“Tem havido uma grande proximidade entre a Igreja Ortodoxa Russa e o regime de Putin”, diz ao Observador a investigadora da Universidade de Coimbra Maria Raquel Freire, doutorada em Relações Internacionais e especialista na política externa da Rússia e no espaço pós-soviético. “Isso torna-se muito claro na partilha de valores mais conservadores. A narrativa russa tornou-se mais conservadora, com a civilização russa como defensora dos valores cristãos mais puros, contra a Europa decadente. Por exemplo, as críticas à ‘Gayropa’, que aparecem no discurso russo.”

Russian President Vladimir Putin visits the Sretensky Monastery

Nos últimos 20 anos, a proximidade entre Vladimir Putin e a Igreja Ortodoxa Russa tem-se tornado evidente

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Para a investigadora Maria Raquel Freire, há pelo menos dois fatores que explicam a importância da Igreja Ortodoxa Russa para Moscovo. Por um lado, “a construção da identidade é fundamental”, explica a especialista. “Há aqui a expressão de uma união de valores cristãos ortodoxos, historicamente construídos entre a Rússia e a Ucrânia. Em termos identitários — e na sequência destes últimos discursos de Vladimir Putin, incluindo o artigo do verão passado em que não reconhece a independência à Ucrânia —, este argumento religioso e identitário acaba por completar a leitura histórica e dá-lhe uma roupagem. Ajuda a legitimar a narrativa.”

Em segundo lugar, a fortíssima influência da Igreja Ortodoxa Russa sobre o povo russo é uma ferramenta poderosa para o Kremlin passar a sua mensagem. “Uma das principais razões [para a aproximação entre a Igreja e Putin] é a capacidade de influência que a Igreja Ortodoxa Russa tem sobre todo o território russo. A questão religiosa, cultural e identitária está muito presente em toda a Rússia e a Igreja ainda tem, em zonas mais remotas, um papel muito importante como veículo de transmissão da mensagem. Por exemplo, com os sermões do Patriarca usados para passar a mensagem do ataque aos valores tradicionais”, diz Maria Raquel Freire.

Outros analistas concordam com esta visão. “A ortodoxia de Putin tem menos a ver com a espiritualidade e a fé do que com a performance religiosa. Deriva da mitificação, por parte do Kremlin, do passado histórico da Rússia”, considera o investigador da Universidade da Califórnia Georg Michels, historiador especializado na história antiga da Rússia, lembrando que “um dos primeiros atos de Putin foi convencer a Igreja a canonizar o último czar Romanov e a sua família”. Isto mostra, no entender de Michels, que “o império criado por Pedro, o Grande está muito presente na cabeça de Putin”.

“A Igreja Ortodoxa Russa fornece muito do simbolismo e da ideologia que Putin usou para cimentar a sua popularidade”, acrescenta Michels. Um dos aspetos em que isso se torna mais evidente é a glorificação da figura do príncipe Vladimir. “Putin considera Vladimir ‘o salvador da Rússia’ e promoveu o culto de Vladimir. Para ele, Kiev e a Crimeia, onde Vladimir foi batizado, são ‘terras russas sagradas’. Atualmente, há uma enorme estátua de Vladimir junto ao Kremlin”, nota o investigador. A estátua foi inaugurada em 2016, já depois da anexação da Crimeia, e foi entendida como uma provocação pelos vizinhos ucranianos, já que ambos os países consideram São Vladimir (ou Volodymyr, na Ucrânia) como o seu pai fundador.

"Tem havido uma grande proximidade entre a Igreja Ortodoxa Russa e o regime de Putin. Isso torna-se muito claro na partilha de valores mais conservadores. A narrativa russa tornou-se mais conservadora, com a civilização russa como defensora dos valores cristãos mais puros, contra a Europa decadente. (...) Este argumento religioso e identitário acaba por completar a leitura histórica e dá-lhe uma roupagem. Ajuda a legitimar a narrativa."
Maria Raquel Freire, especialista na política externa da Rússia e no espaço pós-soviético

“De acordo com a agora dominante perspetiva nacionalista russa, Vladimir foi o pai fundador do primeiro Estado russo e da Igreja Ortodoxa Russa. Estado e Igreja formaram uma simbiose produtiva e Kiev tornou-se no berço da civilização russa”, sustenta Georg Michels, mostrando-se “surpreendido com o facto de a imprensa ocidental não ter coberto o êxtase de Putin com a Igreja Ortodoxa Russa e com a religião, especialmente com os mitos da Santa Rússia e de São Vladimir”. “Na minha opinião, estes mitos históricos e outros semelhantes são fundamentos cruciais para o conflito da Rússia com a Ucrânia”, diz ainda Michels. “A Igreja Ortodoxa Russa é vista como absolutamente crucial na defesa da ameaçada e vitimizada nação russa. A memória coletiva destas lutas de séculos, enfatizadas nos currículos escolares russos, são um legado explosivo.”

A investigadora Maria Raquel Freire acrescenta que o argumento histórico e religioso como sustento e justificação da política externa de Putin não só não é novo como não vai ser abandonado tão cedo. “Putin poderá continuar a usar a justificação religiosa, sem dúvida. Esta narrativa histórica, identitária e religiosa vai manter-se. Aliás, não é nova. Já em 2014 ficou muito evidente e ainda antes estava presente, quando se procura justificar a anexação da Crimeia com base na ideia de que as minorias russas estavam a ser vítimas de genocídio e de ataque aos direitos dos crentes ortodoxos”, argumenta a académica. “Mas eu diria que, neste momento, é mais para consumo doméstico do que internacional.”

Neste aspeto, restam poucas dúvidas de que Vladimir Putin e o Patriarca Cirilo estão perfeitamente alinhados. “Tanto Putin como Cirilo alegam que os russos e os ucranianos são ‘um povo’”, escreveu recentemente o investigador Stephen Minas, do King’s College de Londres, num artigo para o EUObserver a propósito das relações entre o Patriarcado de Moscovo e o Kremlin, acrescentando ainda que “a propaganda sistemática da Igreja sobre a Ucrânia tem sido utilizada na justificação de Putin para a guerra”. Nos vários apelos à paz que tem feito nas últimas semanas, o líder espiritual dos russos não se tem desviado da narrativa oficial do Kremlin: a palavra “guerra” nunca é referida e todo o conflito é enquadrado como uma necessidade por parte da Rússia (um conceito abrangente que inclui também a Bielorrússia e a Ucrânia) de se defender dos inimigos ocidentais, moralmente decadentes. O alinhamento perfeito entre o Patriarca Cirilo I e o Kremlin levanta uma dúvida óbvia: poderá o líder ortodoxo, que se tem multiplicado em apelos à paz nos moldes de Moscovo, intervir em favor de um acordo de paz que coloque verdadeiramente um fim à guerra? A sua crescente aproximação ao Papa Francisco, um dos grandes interlocutores do Ocidente, tem feito aumentar essa esperança.

Que poderá a Igreja fazer no conflito?

No dia 24 de fevereiro, o fatídico dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, o Patriarca Cirilo I pronunciou-se publicamente sobre o conflito e deu a entender qual seria o seu posicionamento daí em diante. “Encaro o sofrimento dos povos causado pelos acontecimentos que estão a ocorrer com uma dor profunda e sentida”, disse Cirilo I no seu primeiro discurso depois da invasão. “Enquanto Patriarca de Toda a Rússia e primaz de uma Igreja cujo rebanho está situado na Rússia, na Ucrânia e noutros países, sinto uma profunda empatia por todos os afetados por esta tragédia.”

“Apelo a todas as partes do conflito que façam todos os possíveis para evitar mortes de civis”, acrescentou Cirilo I, numa intervenção sem as palavras “guerra” ou “invasão”. “Apelo aos bispos, pastores, monges e leigos que forneçam toda a assistência possível a todas as vítimas, incluindo refugiados e pessoas que ficaram sem abrigo e sem meios de subsistência”, afirmou o Patriarca de Moscovo, regressando ao argumento de sempre: “Os povos russo e ucraniano têm uma história comum com vários séculos, que remonta ao batismo dos Rus pelo príncipe São Vladimir, igual aos apóstolos. Acredito que esta afinidade divina vai ajudar a ultrapassar as divisões que surgiram e que conduziram ao atual conflito.”

Christmas liturgy at Moscow's Cathedral of Christ the Saviour

Cirilo I, Patriarca de Moscovo, é o líder espiritual de 90 milhões de russos e uma das vozes mais influentes do país

Anadolu Agency via Getty Images

Stephen Minas tem críticas a apontar a este primeiro posicionamento de Cirilo I. “Na sua primeira declaração pública depois do ataque russo, Cirilo apenas afirmou ‘uma profunda empatia por todos os afetados por esta tragédia’, como se os ucranianos tivessem sido vítimas de uma inundação ou de um terramoto”, escreveu Minas. “Para Cirilo I, obediente às ordens do censor russo, não há ‘guerra’ na Ucrânia.”

Georg Michels concorda: “É impressionante ver que o Patriarca se manteve completamente passivo apesar de os representantes das Igrejas ocidentais terem repetidamente apelado para que ele falasse com Putin. Cirilo parece profundamente desligado. Os pronunciamentos diários do seu gabinete indicam que não há nenhuma guerra na Ucrânia, mas apenas uma crise de refugiados.” Michels referia-se, concretamente, a um apelo lançado pelo Conselho Mundial de Igrejas, a maior organização ecuménica cristã do mundo, para que Cirilo I interviesse em favor da paz. “Em tempos de falta de esperança, muitos olham para si como aquele que poderia trazer um sinal de esperança para uma solução pacífica”, escreveu o padre Ioan Sauca, secretário-geral do CMI, numa carta enviada a Cirilo I no início de março.

“Escrevo a Sua Santidade como secretário-geral em exercício do CMI, mas também como padre ortodoxo. Por favor, erga a sua voz e fale em nome dos irmãos e irmãs que sofrem, a maioria deles também membros fiéis da nossa Igreja Ortodoxa”, continuou Sauca, deixando um apelo explícito: “Com respeito filial e consideração, peço a Sua Santidade para intervir e mediar com as autoridades para parar a guerra, o derramamento de sangue e o sofrimento, e para fazer um esforço no sentido de se alcançar a paz através do diálogo e das negociações.”

Na resposta a Ioan Sauca, o Patriarca Cirilo I desiludiu a grande maioria do universo cristão e recusou mediar o conflito, regressando aos argumentos históricos para defender que Rússia e Ucrânia são um único povo — e que foi o Ocidente quem deu início ao conflito, ao ameaçar a segurança da Rússia. Na prática, Cirilo I apresentou uma versão religiosa do discurso oficial do Kremlin.

“Como sabe, este conflito não começou hoje. É minha firme convicção que os seus iniciadores não são os povos da Rússia e da Ucrânia, que têm origem na mesma fonte batismal de Kiev, estão unidos por uma fé comum, por santos e orações comuns e partilham um destino histórico comum”, escreveu Cirilo I, repetindo o argumento do batismo de Kiev como momento fundador da civilização russa e ucraniana. “As origens deste confronto residem nas relações entre o Ocidente e a Rússia. Na década de 1990, foi prometido à Rússia que a sua segurança e dignidade seriam respeitadas. Porém, à medida que o tempo passou, as forças que abertamente consideram a Rússia a sua inimiga aproximaram-se das suas fronteiras. Ano após ano, mês após mês, os Estados-membros da NATO intensificaram a sua presença militar, desconsiderando as preocupações da Rússia de que essas armas poderiam, um dia, ser usadas contra si.”

O Patriarca destacou também que os inimigos da Rússia procuraram semear a discórdia entre russos e ucranianos, enviando armas para a Ucrânia e contribuindo para a sua degradação moral, aproximando-os do Ocidente. Cirilo I descreve o conflito armado em Donbass como uma luta por parte da população local para “defender o seu direito de falar a língua russa e para exigir respeito pelas suas tradições históricas e culturais”. “Contudo, as suas vozes não foram ouvidas, tal como passaram despercebidas ao mundo Ocidental milhares de vítimas entre a população de Donbass”, acrescentou o Patriarca. “Este conflito trágico tornou-se parte de uma estratégia geopolítica de grande escala com o principal objetivo de enfraquecer a Rússia.”

Numa carta em que nunca refere a possibilidade de intervir junto de Putin ou de mediar um entendimento entre Moscovo e Kiev, Cirilo I acusou o Ocidente de “russofobia” e de querer, com as sanções impostas à Rússia, causar sofrimento, “não apenas aos líderes políticos e militares da Rússia, mas especificamente ao povo russo”. O Patriarca termina a carta com dois apelos: que as igrejas cristãs rezem pela paz e que o CMI “seja capaz de continuar a ser uma plataforma para um diálogo não enviesado, livre de preferências políticas e de abordagens unilaterais”.

Dias antes de ter enviado aquela resposta ao Conselho Mundial de Igrejas, o Patriarca Cirilo I tinha protagonizado outra intervenção pública sobre a guerra na Ucrânia em linha com a sua enorme proximidade ao Kremlin. Num sermão dominical em Moscovo, Cirilo I reiterou que a Rússia tem a missão divina de resistir a um suposto colapso dos valores sociais e morais tradicionais patrocinado pelo Ocidente — e encontrou maneira de culpar as “paradas gay” pela guerra na Ucrânia.

“As paradas do orgulho gay são concebidas para demonstrar que o pecado é uma variação do comportamento humano. É por isso que, para se juntar ao clube desses países [ocidentais], é preciso ter uma parada do orgulho gay”, disse Cirilo I, classificando estas manifestações pela igualdade de direitos como “um teste de lealdade” ao Ocidente que a Ucrânia aparenta estar a passar com distinção — à exceção das duas repúblicas separatistas no leste do país, que “rejeitaram” essa aproximação à degradação moral da sociedade. “Há oito anos que tem havido tentativas de destruir o que existe em Donbass”, afirmou Cirilo I aos fiéis. “Em Donbass, há uma rejeição, uma rejeição fundamental, dos chamados valores que são oferecidos por aqueles que alegam deter o poder mundial.”

"As paradas do orgulho gay são concebidas para demonstrar que o pecado é uma variação do comportamento humano. É por isso que, para se juntar ao clube desses países [ocidentais], é preciso ter uma parada do orgulho gay (...). No Donbass há uma rejeição, uma rejeição fundamental, dos chamados valores que são oferecidos por aqueles que alegam deter o poder mundial."
Cirilo I, Patriarca de Moscovo

Através de referências frequentes a uma perspetiva apocalíptica do mundo contemporâneo, Cirilo I tem enquadrado o conflito na Ucrânia como uma luta entre o bem e o mal, entre os valores morais tradicionais da família e da religião cristã (que a Rússia defende) e um presumível colapso moral da sociedade promovido pelo Ocidente. “É assim que Cirilo fala. Parece acreditar que a Rússia ortodoxa, ou a Santa Rússia, como ele lhe chama, está empenhada numa luta apocalíptica com o Ocidente, que rejeita Deus, sobre o futuro da humanidade”, analisa Georg Michels. “O Patriarca está firmemente com Putin. Ao ler os sermões e discursos publicados no site do Patriarcado, fica-se com a sensação de que o Patriarca vive num universo paralelo. Ele parece verdadeiramente convencido de que o conflito na Ucrânia tem a ver com a salvação da Santa Rússia — a harmonia imaginada entre o Estado, a igreja e a nação que existia na Idade Média.”

Três dias depois da invasão russa da Ucrânia, Cirilo I fez um apelo extraordinário à paz e à unidade da Igreja Ortodoxa no contexto do conflito. Também nesse discurso, o Patriarca de Moscovo rejeitou usar as palavras “guerra” ou “invasão” — e usou a oração pela unidade dos fiéis como modo de, à maneira do Kremlin, recusar a ideia de uma Ucrânia independente. “Devemos rezar pela recuperação da paz, pela recuperação de boas relações fraternais entre os nossos povos. Uma garantia desta fraternidade é a nossa Igreja Ortodoxa unida, representada na Ucrânia pela Igreja Ortodoxa Ucraniana liderada por Sua Beatitude, Onúfrio”, disse Cirilo I, referindo-se à Igreja Ortodoxa Ucraniana fiel a Moscovo — e ignorando por completo a existência da Igreja autocéfala ucraniana, essa sim reconhecida internacionalmente. Aliás, Cirilo I não usou de meias palavras para afirmar que o conceito de “Rússia” abrange todos os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia: “Possa o Senhor preservar a terra russa. Quando digo ‘russa’, uso a antiga expressão da ‘Crónica dos Anos Passados’ [texto ancestral sobre as fundações do povo Rus], a terra que hoje inclui a Rússia, a Ucrânia, a Bielorrússia e outras tribos e povos.”

“Os defensores ucranianos estão a lutar contra invasores russos, mas, de acordo com Cirilo, o conflito é, na verdade, entre um povo Rus miticamente unido e ‘inimigos externos’”, sustenta Stephen Minas. “Estes poderosos atores anónimos, de acordo com Cirilo, têm tentado forçar os residentes de Donbass a realizar uma ‘parada gay’.” Trata-se de um discurso profundamente alinhado com o do Kremlin. Basta lembrar como, no início de março, uma semana depois de ter lançado a ofensiva militar contra a Ucrânia, Vladimir Putin prometeu destruir a “anti-Rússia criada pelo Ocidente”.

A crise Rússia-Ucrânia também se joga nas igrejas. Pode a intervenção do Papa ajudar?

“A forma como o Patriarca se tem posicionado é de apoio à narrativa oficial do Kremlin”, diz ao Observador a investigadora Maria Raquel Freire, antecipando que não parece haver “muito espaço” para uma intervenção pacificadora de Cirilo I. “Ele justifica a ação russa como uma resistência legítima a uma tentativa de imposição de valores anti cristãos, fala da homossexualidade e de como ela vem minar os valores fundamentais. Fala da ação militar, mas nunca usou a palavra guerra ou invasão. Isto já gerou uma grande contestação, incluindo a nível interno na Rússia. Há um pequeno grupo de padres ligados à Igreja Ortodoxa Russa que escreveu uma carta aberta contra a guerra e a favor do cessar-fogo, mas este pequeno grupo que verbalizou a preocupação está sob escrutínio na Rússia.”

Mesmo na hierarquia ortodoxa russa, a posição de Cirilo I está longe de ser unânime. Por exemplo, o metropolita Onúfrio, líder da Igreja Ortodoxa Ucraniana fiel a Moscovo, desrespeitou a linguagem oficial sobre o conflito e não hesitou em usar a palavra “guerra” nem em acusar Moscovo de provocar a violência, comparando a atitude de Putin à da figura bíblica de Caim (filho de Adão e Eva, que matou o seu irmão Abel por inveja, introduzindo o pecado do homicídio na humanidade). “Neste tempo trágico, manifestamos um amor e um apoio especial aos nossos soldados, que estão de guarda, protegem e defendem o nosso território e o nosso povo”, afirmou o bispo ucraniano, acusando a Rússia de uma “guerra fratricida” contra a Ucrânia. “A guerra entre estes dois povos é a repetição do pecado de Caim, que matou o irmão por inveja. Uma guerra assim não tem desculpa, nem de Deus nem dos homens.”

Perante este cenário, a investigadora Maria Raquel Freire não acredita que o Patriarca Cirilo I possa vir a ter uma intervenção na mediação do conflito na Ucrânia. Pelo contrário, o Patriarca de Moscovo, forte aliado de Putin e beneficiário direto dessa proximidade com o regime, deverá continuar a fornecer argumentos históricos e religiosos ao Kremlin para sustentar a invasão da Ucrânia. E muito dificilmente uma pressão por parte das bases poderá fazer Cirilo I mudar de ideias. Por um lado, porque a informação sobre a guerra é apresentada aos fiéis dentro das igrejas segundo a narrativa do Kremlin; por outro lado, porque a resposta aos dissidentes dentro da Igreja Ortodoxa é semelhante à que é dada aos dissidentes na esfera política.

“Aquilo a que temos assistido é uma política agressiva de repressão. Por exemplo, a carta aberta circulou, mas as pessoas estão a ser alvo de represálias”, diz Maria Raquel Freire. “Neste momento, já teria uma implicação em termos de imagem ou de reputação. Ao haver um movimento crítico dentro da própria Igreja Ortodoxa Russa face ao que tem sido o posicionamento do Patriarca, estamos perante uma fragilização.”

O passado de Cirilo I também mostra que dificilmente haverá um corte com a política de Putin. “Em geral, há muito poucas indicações de que o Patriarca Cirilo alguma vez tenha verdadeiramente discordado de Putin”, diz Georg Michels. “Na verdade, os dois parecem dar-se muito bem. Putin vai à missa com o Patriarca nas igrejas do Kremlin, visita mosteiros com ele e recebe a sua bênção. Há quase 30 anos, o conhecido padre dissidente Gleb Yakunin encontrou provas, nos arquivos da polícia secreta, de que Cirilo, como muitos outros hierarcas da Igreja russa, ganhou notoriedade devido à sua proximidade com o KGB (agora FSB). Por isso, o Patriarca provavelmente partilha com Putin uma trajetória de carreira muito semelhante, uma vez que Putin também chegou ao poder através do KGB.” Efetivamente, não faltam os relatos, com base em arquivos soviéticos, de que tanto Cirilo I como o seu antecessor, Alexy II, foram informadores do KGB durante vários anos no período da União Soviética.

A conversa de Cirilo I com o Papa Francisco

Apesar de tudo isto, a possibilidade de o líder espiritual russo servir de intermediário à negociação de um acordo de paz tem sido acalentada devido à sua crescente aproximação ao Papa Francisco — interlocutor do Ocidente por excelência. Em 2016, Cirilo I e Francisco reuniram-se pessoalmente em Havana, Cuba, naquele que foi o primeiro encontro entre um Patriarca de Moscovo e um Papa. A reunião histórica abriu um precedente que nem o cisma intra-ortodoxo de 2019 viria a abalar. O Vaticano tem tido contactos próximos com o Patriarcado de Moscovo e chegou a estar agendado para 2022 um novo encontro pessoal entre Francisco e Cirilo I (talvez na Finlândia, uma vez que o sonho antigo de um Papa visitar Moscovo continua improvável), mas parece difícil que se realize no contexto atual.

A diplomacia do Vaticano tem um currículo recheado de mediações bem sucedidas — basta lembrar o caso das relações diplomáticas entre Cuba e EUA, que foram restabelecidas em 2014 depois de Francisco ter mediado pessoalmente o entendimento entre Barack Obama e Raúl Castro —, o que leva analistas como Victor Gaetan, reputado especialista na diplomacia vaticana, a acreditar que a intervenção do Papa Francisco junto de Cirilo I poderá ser um caminho para a pacificação do conflito. Todavia, a recente recusa do Patriarca de Moscovo em intervir junto de Putin esfriou essas expectativas.

Pode o país mais pequeno do mundo negociar a paz entre a Rússia e a Ucrânia? “As bases para a intervenção do Vaticano foram lançadas”

Esse sinal parece ter sido entendido pelo Papa Francisco. Depois de, nos primeiros dias, ter condenado a violência na região sem acusar diretamente a Rússia de motivar a violência (para deixar a porta aberta à negociação), três dias depois de Cirilo I ter recusado mediar o conflito, o líder da Igreja Católica intensificou o discurso. “Em nome de Deus, peço-vos: parem este massacre”, apelou no Vaticano, classificando a situação na Ucrânia como uma “agressão armada inaceitável”, “bárbara” e “sem razões estratégicas válidas”. Mais recentemente, Francisco tem usado com maior frequência a palavra “guerra”.

Ainda assim, enquanto na Bielorrússia as delegações da Rússia e da Ucrânia continuavam a negociar — e, por todo o mundo, se multiplicavam as ofertas de mediação —, o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo I tiveram uma discreta reunião virtual que poderá ajudar a encaminhar as negociações. A reunião virtual decorreu ao início da tarde da última quarta-feira e pouco se sabe sobre o seu conteúdo. Ambas as partes divulgaram curtos comunicados com informações genéricas sobre a conversa. A principal diferença entre as duas notas salta à vista: enquanto o Vaticano diz que a discussão se centrou na “guerra na Ucrânia”, o Patriarcado de Moscovo assinala que os líderes discutiram a “situação em solo ucraniano”.

Rencontre du pape François et du patriarche orthodoxe Kirill - Cuba

O Papa Francisco e o Patriarca Cirilo I encontraram-se em 2016. O encontro, histórico, repetiu-se agora, mas apenas por via digital

Gamma-Rapho via Getty Images

“A conversa incluiu uma discussão detalhada da situação em solo ucraniano. Foi dada atenção especial aos aspetos humanitários da atual crise e às ações da Igreja Ortodoxa Russa e da Igreja Católica Romana para ultrapassar as suas consequências”, lê-se no comunicado do Patriarcado de Moscovo. “As duas partes sublinharam a importância primordial do atual processo de negociação, expressando a esperança de que uma paz justa possa ser alcançada o mais rapidamente possível.”

Segundo o comunicado do Vaticano, os dois líderes concordaram que “a Igreja não deve usar a linguagem da política, mas a linguagem de Jesus” — e discutiram “o papel dos cristãos e dos seus pastores para fazerem todos os possíveis para garantir que a paz prevalece”.

O Papa Francisco disse a Cirilo que ambos teriam de assumir o seu papel como líderes cristãos. “Somos pastores de um mesmo Santo Povo que acredita em Deus, na Santíssima Trindade, na Santa Mãe de Deus: é por isso que temos de nos unir nos esforços para ajudar a paz, para ajudar aqueles que sofrem, para buscar caminhos de paz e para apagar o fogo”, afirmou Francisco na reunião virtual. “Houve um tempo, até nas nossas Igrejas, em que as pessoas falavam de guerra santa ou guerra justa. Hoje, não podemos falar assim. Foi desenvolvida uma noção cristã da importância da paz.”

Apesar da aproximação entre o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo I, o alinhamento total entre o líder espiritual russo e o Kremlin parece deixar pouca margem para esperar uma influência de Cirilo I junto de Putin para colocar um ponto final na guerra. Pelo contrário, a perspetiva religiosa, que cimenta a influência de Moscovo sobre a Ucrânia, é muito útil ao Kremlin para justificar os esforços de guerra de defesa da Santa Rússia contra um Ocidente imoral. Mil anos de história explicam porquê.

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