A explosão aconteceu em Novembro. Mas não foi realmente aí que tudo começou.
Meses antes, a Ordem dos Médicos e as autoridades de Saúde tinham ordenado a suspensão de toda a actividade médica, excepto aquela que fosse inadiável. Como nada é verdadeiramente “inadiável” (até respirar é adiável, mesmo que seja só por alguns minutos), os cuidados médicos foram todos suspensos.
Tudo. Consultas, cirurgias, exames. Parou tudo.
Só se mantinham os cuidados aos doentes com a tal doença-VIP, chamada Covid-19. E esses eram prioritários, com todos os recursos dedicados a eles. Tudo o resto parou.
E quando, após longas semanas, tentaram reiniciar os cuidados aos outros doentes, já era tarde. Não só era muito difícil compensar tudo o que tinha ficado por fazer durante o tempo de paragem total, como as alterações impostas ao funcionamento das instituições de saúde o impediam.
Porque os centros de saúde continuavam sem permitir consultas presenciais, era tudo feito por telefone, e mesmo assim bem difícil de conseguir.
Porque os hospitais tinham toda a sua actividade alterada, com circuitos, instalações e recursos materiais e humanos alocados exclusivamente para a doença-VIP. E havia uma enorme escassez de tudo para as outras doenças e doentes. Outras doenças e doentes que, para além de não existirem na comunicação social e redes sociais, também não existiam nas cabeças dos governantes e decisores. Só existia a doença-VIP e os seus números.
Ainda no Verão, a estação em que é habitual uma menor actividade na saúde, já as enfermarias de Medicina Interna, limitadas em espaço e em pessoas que tinham sido desviadas para a doença-VIP, estavam cheias e sem vagas para os outros.
A explosão foi em Novembro.
Foi quando a gripe e as outras doenças respiratórias habituais de todos os Invernos surgiram e ocorreu a enchente de sempre.
Foi a Hecatombe.
É verdade que os casos da doença-VIP também aumentaram. Como já se sabia e era de esperar. Mas não foi por aí que a Hecatombe aconteceu. Não.
Foram os doentes habituais, aqueles de sempre, os de todos os Invernos. Desta vez adicionados aos doentes das outras doenças, que tinham ficado sem cuidados durante tantos meses e que, finalmente, descompensaram e passaram a ser “inadiáveis”.
Os diabéticos, há muitos meses sem consultas nem exames. Os doentes cardíacos e respiratórios crónicos, sem vigilância nem ajuste de medicação há tanto tempo. Os doentes com cancros não diagnosticados atempadamente, por encerramento dos serviços e de exames. Cancros intestinais que surgiam já entupidos e a vomitar fezes. Cancros da mama, da próstata, de tudo e mais alguma coisa, em fase avançada, com complicações e tarde de mais para os tratamentos serem eficazes.
Juntamente com todos os outros doentes, abandonados e sem conseguirem ter os cuidados de que habitualmente dependiam.
Uma vez que as pessoas com determinados sintomas frequentes (febre, tosse, falta de ar) eram impedidas de entrar nos centros de saúde ou clínicas privadas, quando as coisas explodiram, em Novembro, os doentes começaram a invadir, a encher e a bloquear os serviços de urgência.
É verdade que isto acontecia sempre, todos os Invernos, sem nunca ninguém se preocupar, sem que nada mudasse até ao ano seguinte.
Só que, neste Inverno, foi ainda pior.
Foi a Hecatombe.
Os serviços de urgência rebentaram. Todos. Sem excepção. E não havia nenhum para onde se pudessem desviar os doentes, que continuavam a chegar, sempre mais, sempre mais.
Não eram os doentes da doença-VIP. Eram os outros. Os normais de sempre. Mas agora em maior número e com menos locais para serem internados.
Os serviços telefónicos de apoio à saúde deixaram de funcionar por excesso de chamadas. As pessoas passaram a ter de ir às urgências pelos seus próprios meios, pois não havia resposta suficiente dos serviços de transporte de doentes urgentes. Viam-se verdadeiros engarrafamentos de ambulâncias e de viaturas particulares à entrada dos serviços de urgência. Houve conflitos e agressões entre as pessoas, desesperadas por serem assistidas.
A falta de macas fez com que houvesse doentes deixados pelos bombeiros no chão das urgências. Outros ficavam nas macas existentes, acumulados em cardumes sem espaço nem circulação, pelos cantos das salas e pelas paredes dos corredores. A falta de vagas de internamento levou a que os doentes ficassem dias, por vezes semanas, no serviço de urgência, sem médicos, enfermeiros, ou auxiliares em número suficiente para deles cuidarem.
Foram surgindo relatos de pessoas encontradas já sem vida, nos corredores caóticos. Ou de doentes esquecidos durante dias, sujos dos seus próprios dejectos, sem serem alimentados ou hidratados. Numa maca qualquer, encostada a um canto, a uma parede, com outras macas à sua volta.
Foi a Hecatombe.
Os circuitos que eram exclusivos para a doença-VIP, na urgência e nas enfermarias, não tiveram problemas. Havia sempre vagas e profissionais para esses doentes. Mas para os outros não.
Era inevitável, impossível de prever, disseram uns. A culpa foi dos médicos, esses cobardes que não fizeram o que lhes competia, disseram outros. Não podíamos deixar de seguir as recomendações da OMS e da DGS, explicaram. O que queriam que fizéssemos?, perguntavam.
A culpa não foi nossa, concluíram todos, no fim. Quando as mortes totais se elevaram, de forma descontrolada, para números nunca antes vistos, bem maiores do que os mortos alguma vez causados pela doença-VIP.
Foi a Hecatombe.
Mas não foi culpa de ninguém.