Os países ocidentais estão em guerra sobre a sua história. Portugal não é excepção. Ora, o Presidente da República, em vez de apaziguar, inflamou as discussões sobre a nossa história, defendendo “reparações” às antigas colónias pelos crimes cometidos durante a colonização. Com a sua habitual irresponsabilidade, Marcelo Rebelo de Sousa não disse quais seriam as reparações e como seriam feitas.
Não sou especialista sobre a história colonial, mas estudei história o suficiente para saber duas coisas: os conflitos sobre a história obedecem a motivações políticas do presente; e normalmente acabam mal. Antes de exibirmos uma enorme ligeireza sobre a compreensão da história, e de fazermos afirmações categóricas, que nada têm de análise histórica, mas sim de luta política, devíamos ter consciência sobre as fracturas que estamos a cavar e as suas consequências. Não duvido das boas intenções de alguns (onde não incluo o Presidente da República), mas são de uma ligeireza e mesmo de uma inocência graves. Como se diz habitualmente, e com razão, o inferno está cheio de boas intenções.
Não vou entrar nos pormenores da história do colonialismo, a qual é muito complicada, e seguramente não se divide entre diabos e anjos. Mas há um ponto fundamental. De onde vem a legitimidade daqueles que se querem tornar os juízes do passado? Que mandato receberam, e de quem, para julgar o que foi feito há 500, há 400, há 300, há 200 e há 100 anos? Por que razão acham que é válido recorrer a valores contemporâneos para julgar comportamentos de sociedades que viviam com categorias normativas e morais absolutamente diferentes? É extraordinário que a visão punitiva do passado vem de pessoas progressistas. O julgamento do passado com categorias do presente constitui precisamente a negação do progresso.
A arrogância de quem considera que tem o poder e a legitimidade para julgar o passado significa um dos exemplos mais poderosos, e negativos, do comportamento “superhumano” de Nietzche, que renuncia totalmente à humildade e dá a si próprio os poderes supremos de tudo julgar e de tudo condenar de acordo com a sua experiência particular. Veja-se um exemplo. Muitos que condenam o “imperialismo ocidental”, que quer impor os valores liberais a outros povos e outras culturas, praticam uma espécie de “imperialismo do presente”, impondo os seus valores a todo o passado.
Mas as guerras culturais sobre a história não acontecem por acaso agora. Vivemos um período da política global onde há uma aliança entre a Rússia, a China e o Irão que procura enfraquecer os países ocidentais. Semanalmente, Putin, Xi e os líderes espirituais de Teerão acusam os países ocidentais de colonialismo (como sabemos muito bem a Rússia, a China e o Irão nunca conquistaram impérios) e de crimes históricos. A rejeição da história é fundamental para enfraquecer identidades nacionais e os países ocidentais. Os nossos juízes da história são aliados objectivos das estratégias da China, da Rússia e do Irão de enfraquecer os países ocidentais, a maioria sem ter qualquer consciência disso, mas alguns sabem muito bem o que estão a fazer. Cada vez que se ataca a nossa história com a violência com que o Presidente o fez, reforça-se o poder daqueles que nos países de língua portuguesa se querem aliar à China e à Rússia e não aos países ocidentais. Terão Putin e Xi acrescentado Marcelo à lista dos seus aliados no Ocidente?
Obviamente, a história deve continuar a ser discutida e interpretações diferentes do passado são bem-vindas. Mas interpretar, criticar não significa julgar tempos diferentes com os nossos quadros mentais e normativos, como se estivéssemos a colonizar o passado com as ideologias contemporâneas.
Mas há outra questão relevante. O conceito de responsabilidade colectiva é muito polémico. Há muitos portugueses que se recusam a aceitar responsabilidade pelo que aconteceu no Império português. Nas democracias liberais e pluralistas, por regra, a responsabilidade individual deve prevalecer sobre a responsabilidade colectiva. Desconfio que a maioria dos portugueses não sente responsabilidade individual pelas políticas coloniais do passado. Só em circunstâncias absolutamente excepcionais é que a responsabilidade individual deve estar subordinada à responsabilidade colectiva. E, para que isso aconteça, é necessário um consenso nacional muito forte. No caso das “reparações” às antigas colónias parece-me que estamos muito longe de um consenso nacional. Pelo contrário, parece ser uma questão fracturante que só irá dividir ainda mais o país.