Em tempo de discussões sobre a igualdade de género e de alguns artigos mais sentidos sobre o tema, sinto a necessidade de voltar a um tema que me é querido: as conclusões baseadas em má estatística. E quando essas conclusões fazem falar os políticos é quando nos cabe a nós, cidadãos, dizer alguma coisa sobre o assunto antes que saia asneira.
Quem me lê sabe que defendo sempre o conhecimento da física do sistema antes de tirar conclusões com os dados. Por outras palavras, devemos sempre perguntar se os dados que temos são o reflexo do conjunto de mecanismos que queremos estudar. É por isso que os cientistas tentam isolar as suas experiências, embora nem sempre isso seja possível. Num sistema económico, por exemplo, isso é impossível, pelo que tem de haver um cuidado redobrado na forma como os dados são recolhidos e interpretados. E, não raras vezes, devemos rejeitar os dados, não porque têm pouca qualidade, mas porque nos falta a certeza de refletirem todo o conjunto de mecanismos envolvidos no que pretendemos estudar.
Vamos começar pela má estatística e pelo chamado “gender pay gap”, a expressão em inglês para a diferença verificada entre o que ganha um homem e o que ganha uma mulher, em média. Primeiro, vamos dizer que não há nada de errado nos números. Quando falo em má estatística não falo na incapacidade de somar 1+1. Os números são reais, tanto quanto me é dado a perceber, e recolhidos por pessoas tão sérias quanto posso afirmar. O problema raramente reside na recolha dos dados. Mas, se assumirmos os dados como reveladores de toda a verdade, então só há uma conclusão a tirar: as mulheres são inferiores aos homens! Não sou eu que estou a dizer, atenção, são os “dados”. Já lá vão algumas gerações desde que as mulheres eram impedidas de exercer certos cargos e funções; hoje são perfeitamente livres de enveredar pela carreira que entenderem. Por isso, se ganham pior, é porque trabalham pior. Certo?
Errado. E vou dizer isto, porque é preciso dizer: as mulheres não são inferiores aos homens no contexto laboral do mundo moderno. É preciso dizer porque muitas pessoas pensam que há um fundamento moral qualquer que nos obriga a favorecer as mulheres face aos homens, que são iguais porque há uma lei (até está na Constituição, mas isso…) que nos obriga a dizer que são iguais. Não é nada disso. Se há uma lei que nos obriga a dizer que são iguais é porque são fisicamente iguais. Se amanhã alguém colocasse na Constituição que o porco é igual ao homem, isso seria irrelevante e nada faria do porco um ser igual, apesar da quantidade de homens porcos que possamos conhecer.
Há uma realidade, independente da lei, da moral, da religião, isto é, do conjunto de absurdos que vive na nossa cabeça. Realidade, essa, que nega toda e qualquer tentativa de fazer as mulheres diferentes em termos de capacidade intelectual. É essa a “física” do sistema. Se os dados nos estão a transmitir algo de diferente, é porque a experiência está a ser mal feita à partida. E como não temos controlo sobre as condições em que a experiência está a ser feita, a conclusão óbvia é que os dados, estando “certos”, não nos podem levar a nenhuma conclusão. Essa é a atitude correta do ponto de vista científico e a minha posição sobre o assunto tem sido essa.
O problema é que nada disto nos liberta da incoerência entre a física do sistema e os dados recolhidos. Se fosse uma mera questão científica, mandávamos o problema para o enorme saco dos mistérios científicos que ainda não conseguimos resolver. Mas é um problema que envolve pessoas. E o que envolve pessoas, envolve políticos e políticos que fazem leis em função da perceção das pessoas, que por sua vez são muito pouco atentas à relação entre os dados e a física do sistema que os produz. Por causa disso, o leitor vai levar com uma das minhas regras cuja validade nunca ninguém provou: se a física está certa e os dados estão corretamente recolhidos, mas não batem, então temos um problema de referencial. Por outras palavras, está tudo certo, o que não está certo é forma como estamos a olhar para o problema.
No fim do ano passado, surgiu um estudo interessantíssimo sobre a questão, da autoria de Guillaume Vandenbroucke do FED, nos EUA, do qual copiamos a figura abaixo. Os dados são relativos aos EUA, mas deixem-me dizer-vos que o português é muito mais aberto nestas coisas que o americano, pelo que, para os devidos efeitos, vamos assumir os dados como aplicáveis a nós. O que o gráfico tem de interessante é que acrescenta a dimensão do estado civil aos dados do “gender gap”. Se retirarmos o “detalhe” do casamento, se as pessoas não se casassem, os dados corroboravam a física. Não há uma diferença assim tão grande entre os homens e as mulheres no que a pagamento diz respeito ou, vendo pelo lado laboratorial – não –, as mulheres não são inferiores aos homens. O segundo dado interessante é que não há grande diferença entre as mulheres casadas, as mulheres solteiras e os homens solteiros. Onde a diferença se verifica é entre os homens casados e todos os outros.
Como não sou economista, não vou andar em raciocínios especulativos sobre as razões pelas quais os homens casados são tão mais bem pagos. Os dados não nos permitem tirar nenhuma conclusão, nem sequer tenho mais física para usar que me permita ir buscar outros referenciais. Só tenho esta: homens e mulheres são iguais. Mas os dados permitem ver onde está o problema e onde não está. O problema não está na empresa, está no casamento. Se estivesse na empresa, haveria uma diferença nos solteiros semelhante àquela que existe nos casados.
Por isso, senhores políticos, não vale a pena legislarem quotas no emprego quando não as conseguem legislar onde o problema está de facto, em casa. O emprego não tem problema nenhum (em média, claro) e até é criminoso andar a divulgar a ideia de que os empregadores portugueses são um bando de javardolas que pagam menos a mulheres. Porque o efeito será, obviamente, o de se protegerem contra as acusações de desigualdade, evitando ter no quadro quem seja desigual. Espero que isto os convença que impor quotas no sítio onde não há problema é estúpido. Porque encontrar “soluções” onde não há problemas, não resolve o problema inicial, só cria outros.
Para as mulheres que acham que isto não é um problema, que dedicar-se à nobre tarefa de cuidar dos filhos e serem fadas do lar não é um problema para todos nós, deixem-me argumentar o contrário. É, de facto, um problema. Se as mulheres são iguais aos homens, são um elemento importante do ponto de vista económico. Se decidem ficar em casa, ou porque aprenderam da mãe que o marido é que deve ir buscar o sustento, porque se sentem mais confortáveis, ou pelas razões que forem, compreendam que estão a lesar o coletivo que vos rodeia em benefício da vossa família, que vou admitir que existe. Obviamente, têm todo o direito de o fazer, têm todo o direito de preferir cuidar dos filhos a trabalhar num emprego como o vosso marido. A vida é vossa e devem poder fazer dela aquilo que entendem, mas percebam que para nós, para aqueles que vivem à vossa volta, é um problema. Até porque não sabemos se o vosso marido é mesmo o melhor que o casal tem para oferecer ao mundo laboral.
Para os homens que acham que isto não é um problema, deixem-me dizer-vos que é principalmente para vocês. Poderiam ter uma vida muito mais confortável se impusessem às vossas esposas que cumprissem o desígnio de ter uma carreira como qualquer homem. E lembro-me sempre de um colega iraniano que tenho que, no dia em que o entrevistei, me disse “eu sou bom nisto, mas não sou tão bom como a minha mulher. Ela sim, percebe disto…”
Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador