Hoje em dia é exigente o processo de criação de conhecimento e intelectualização. Isto ocorre fundamentalmente pelo facto de sermos submetidos a uma sociedade do cansaço, do consumo e da novidade. Na senda da novidade, apesar dos seus benefícios no que diz respeito à acessibilidade da informação, a estimulação tecnológica altera também os padrões do nosso pensamento, através do reforço de determinadas áreas cerebrais, criando dependência e reduzindo a nossa capacidade de concentração. Isto impacta negativamente a nossa capacidade de nos cultivarmos. Essa capacidade de nos cultivarmos, por sua vez, torna-se uma necessidade urgente de modo a reduzir a nossa fragmentação. Porque é que isto é importante? Porque é essa fragmentação que gera vulnerabilidade, pela falta de conteúdo (ferramentas) para enfrentar a vida, e porque esse conteúdo gera conectores para darmos sentido às coisas.

Um antídoto para este fenómeno é a literacia. Mas se posso dar um conselho, esta não deve ser uma literacia qualquer. Com isto não quero dizer que as pessoas devem ser condicionadas a ler X ou Y, porque toda a gente deve manter a liberdade de ler o que quiser. No entanto, a estratégia deve (con)centrar-se em ler livros de qualidade, em vez de simplesmente uma grande quantidade de livros. Porque embora todos os livros sejam pertinentes, existem definitivamente uns melhores do que os outros. Por isso é que por vezes a viagem à etiqueta #bookstagram seja redundante ou insuficiente. Visto que ler 100 livros por ano não garante necessariamente a aquisição de literacia.

Por exemplo, ao descobrir um clássico estamos a entrar pela porta da Matrix. Sei que pode soar a cliché, mas ler precocemente o 1984, embora não tivesse consciência da magnitude, dotou-me de ferramentas para estar preparado para certas movimentações políticas e sociais. Em particular O Idiota de Dostoiévski foi o livro mais terapêutico que li até hoje. Não estou a dizer que a cronologia das leituras deva ser esta, ou que tenha de ler em particular estes livros. Porém um clássico detém esta capacidade de revolucionar o nosso mundo, porque ele está para além das tendências sociais e políticas. Atrevo-me a dizer que um clássico, em princípio, atravessa o crivo das agendas e das ideologias. Desta forma, pode proporcionar uma estrutura sólida para o nosso pensamento.

A partir daí inicia o processo mais difícil que é articular o conhecimento com a atualidade. Para isso é preciso criar conectores. Com conectores quero dizer pontes que nos ligam ao nosso mundo interno e dão sentido ao mundo externo. Existem pelo menos duas formas para gerar conectores. Ler os escritores da crítica contemporânea e por outro lado os seus adversários. Ao longo deste exercício, e através das experiências da nossa vida, já deveremos ter o nosso viés formado. O viés não é algo totalmente negativo. Apenas se torna negativo quando não consciente. Quando ele é consciencializado, torna-se uma forma de conector entre aquilo que são os nossos sentimentos e o que procuramos da sociedade. Esse conector por si reduz ligeiramente a nossa alienação, visto que a pior alienação não é estar sozinho, mas sim desligado de si mesmo.

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Relativamente a este exercício, é crucial a leitura de crónicas de jornais e dos seus colunistas. Devemos inclusive sair da nossa zona de conforto, lendo opiniões divergentes, para evitar o confinamento na nossa própria bolha de pensamento. Assim sendo, encorajo a um Sparring intelectual, onde possamos treinar as nossas ideias, debater na secção de comentários, sem a premissa de ganhar o argumento. No entanto, ao nos propormos a isso, podemos inadvertidamente trocar uma bolha por outra, ou até entrar na ‘toca do lobo’, onde a receptividade pode não ser amigável.

A minha sugestão é que o debate não deve ser visto como uma batalha, mas como uma oportunidade de crescimento pessoal. Devemos, no entanto, estar cientes de que algumas pessoas podem também atacar baseadas em preconceitos, e não nas ideias. Não obstante, a finalidade deste exercício é melhorar a nossa capacidade de articular ideias de maneira mais ponderada e cuidadosa. Para tal, é essencial que não nos limitemos a fazer breves observações sobre determinado tópico, mas que nos esforcemos para aprofundar e expandir a nossa compreensão sobre o assunto. Contudo, dê margem para o erro. Como diria o avô Freud, “poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons”.

Consequentemente, o segundo exercício é escrever. Escrever sobre as nossas ideias, sobre o nosso viés, sobre a ideologia e esticar ao máximo os conceitos. Através deste exercício, conseguimos compreender se essas ideias têm substância, se são incompletas, se são infundadas, ou se nós somos insuficientes. É neste último que podemos encontrar (ou não) as nossas incongruências. Aos poucos, podemos nos tornar menos fragmentados.

Por fim, o último e talvez mais importante exercício, é comunicar as nossas ideias. Observar como elas impactam os outros e, dado que a comunicação não é unidirecional, ouvir atentamente o que eles têm a dizer. Isso inclui tanto o que é expresso verbalmente quanto as reações não verbais àquilo que foi dito. Se formos capazes de interpretar a reação do outro à nossa mensagem, essa habilidade pode ajudar-nos a enfrentar a adversidade e o desconhecido, aumentando assim a nossa probabilidade de sermos bem-sucedidos na vida. Além do mais, a palavra diálogo deriva do grego, onde ‘dia’ significa “por intermédio de” e ‘logos’, que se refere à palavra, também se refere à criação de sentido. Por isso entendo o processo de diálogo como o processo de criação de sentido da vida.

Na sociedade contemporânea falta-nos ambos. Tanto a articulação, como o diálogo. Ou seja, faltam-nos os conectores fundamentais para a existência humana. Por isso no final do dia devemos beber uma cerveja com os amigos e discutir os nossos progressos, retrocessos, transformações e casmurrices. Se tivermos um bom amigo, ele dar-nos-á um ‘safa-ou-não’ e amparará a queda.