Como foi possível que tantos ignorassem durante tanto tempo o evidente declínio das faculdades mentais do Presidente Joe Biden? Em Agosto de 2022 chamei aqui a atenção para a situação de Biden, alertando para o que já há dois anos era cada vez mais óbvio: “Como explicar que ao fim de tão pouco tempo de um primeiro mandato presidencial – com tratamento mediático amplamente favorável e sucedendo a uma figura altamente polarizadora como Trump – Biden se tenha transformado num dos presidentes mais impopulares da história dos EUA? A posição de incumbente na presidência dos EUA, em especial nos primeiros mandatos, costuma assegurar um bónus de popularidade significativo. Mas a verdade é que se vão sucedendo sinais em intervenções públicas de que Biden pode já não estar no pleno uso das suas faculdades – pelo menos não ao nível exigido para exercer o cargo político mais poderoso do mundo. Por seu lado, Kamala Harris demonstra repetidamente a sua falta de preparação e, em alguns temas, o seu radicalismo, que afasta até muitos eleitores da esquerda moderada.”

Infelizmente, só depois de Biden ter sido exposto a um inegável debacle no debate de 27 de Junho é que, subitamente, o discurso público mudou drasticamente, passando a dar como inevitável a sua desistência. A desistência de Biden abriu caminho a Kamala Harris, a única opção viável neste momento tardio, sendo que ao reflectir sobre a sucessão de eventos ao longo dos últimos meses é difícil encontrar melhor resumo do que a formulação de George Orwell em 1984: “The party told you to reject the evidence of your eyes and ears. It was their final, most essential command.”

Na mesma linha, como muito bem salientou Viriato Soromenho-Marques : “Há meses, ou anos, que uma indústria poderosa de “mentira organizada” (uso uma expressão de Hannah Arendt), ao serviço de quem manda nos EUA, ocultou do povo americano e do mundo que o presidente declinava rapidamente nas suas faculdades mentais, mantendo, contudo, intacta a primitiva pulsão de poder.”

Esta poderosa indústria da “mentira organizada”, com ligações próximas ao complexo militar-industrial tal como definido por Eisenhower, não é, no entanto, nova. Uma das suas manifestações mais tristemente célebres e impactantes nas últimas décadas foi a da campanha de propaganda sobre a existência de alegadas “armas de destruição em massa”. Campanha essa que acabou por conduzir à invasão do Iraque em 2003, à subsequente ocupação, à desestabilização da região e a centenas de milhares de vítimas directas e indirectas do conflito, a larga maioria das quais civis inocentes.

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O jogo de ilusões e mentiras orquestrado para tentar legitimar junto das opiniões públicas ocidentais uma guerra em larga escala para derrubar o regime ditatorial de Saddam Hussein foi provavelmente o pináculo da aplicação da desastrosa doutrina neoconservadora na política externa dos EUA – e, por arrasto, dos seus aliados ocidentais. Com origens que remontam a um conjunto de ideólogos que transitaram da extrema-esquerda mais radical para o mainstream político dos EUA nos anos 1960 e 1970 e atingiram o seu pico de influência no inícios dos anos 2000, o neoconservadorismo – fiel às suas origens – foi sempre um movimento de natureza profundamente revolucionária. Ideias como as de que caberia aos EUA o papel de promover a nível global “guerras de libertação” e que a democracia poderia ser estabelecida de forma sistemática por via de processos externos de “regime change” e “nation-building” são, em muitos aspectos, uma mutação do velho conceito marxista de “revolução mundial”, mas com o suposto fim da História idealizado a ser o demo-liberalismo laico, progressista e globalista em vez do comunismo global. O “Iraq Liberation Act” de 1998, que lançou as bases da posterior invasão de 2003, foi a esse respeito sintomático.

Importa aqui recordar e salientar que quem nunca alinhou na desastrosa doutrina neoconservadora foram os três últimos Papas. São João Paulo II opôs-se frontalmente à invasão do Iraque tendo inclusivamente afirmado em Janeiro de 2003: “NÃO À GUERRA”! Ela nunca é uma fatalidade. Ela é sempre uma derrota da humanidade. O direito internacional, o diálogo franco, a solidariedade entre os Estados, o exercício tão nobre da diplomacia, são os meios dignos do homem e das nações para resolver as suas contendas.”

Em Março de 2003, o Papa João Paulo II enviou até o Cardeal Pio Laghi para tentar persuadir o então Presidente George W. Bush a não prosseguir com a pré-anunciada invasão e “guerra de libertação”. O Papa Bento XVI foi ainda mais vigoroso na sua oposição à doutrina neoconservadora. Ainda enquanto Cardeal, Ratzinger tinha-se oposto publicamente e frontalmente à invasão, assim como à doutrina neoconservadora subjacente à defesa contemporânea da “guerra preventiva”. E ao longo de todo o seu pontificado manteve uma posição de defesa consistente da paz e muito crítica do militarismo. Posições que, não obstante as significativas diferenças entre os dois noutros domínios, têm como é sabido sido prosseguidas pelo Papa Francisco, que tem sido incansável na tentativa de estimular resoluções diplomáticas para os conflitos militares e na sua crítica a todos quantos justificam e perspectivam a guerra como uma ferramenta para fazer avançar os seus interesses. Chamando a atenção, como fez numa intervenção recente, para que “a guerra é em si um crime contra a humanidade”, o que é logicamente incompatível com a perspectiva neoconservadora das “guerras de libertação” ao serviço da agenda globalista.

No pico da sua popularidade, o neoconservadorismo tornou-se uma espécie de consenso doentio do centro político nos EUA, englobando tanto Republicanos como Democratas e moldando as suas visões sobre a política externa. Mas importa relembrar também que mesmo nesse período mais duro e difícil – em que divergir do consenso centrista pró-guerra acarretava elevados custos políticos e pessoais – houve quem resistisse corajosamente também à direita. As candidaturas em 2008 e 2012 do congressista Ron Paul nas primárias presidenciais do Partido Republicano foram marcadas por uma forte mensagem anti-guerra e de denúncia da catastrófica agenda neoconservadora que tinha sido dominante na política externa dos EUA. Um legado que veio a ser continuado pelo seu filho – o Senador Rand Paul – nas primárias presidenciais do Partido Republicano em 2016.

Nem Ron Paul nem Rand Paul tiveram sucesso (e foram aliás alvo de fortes ataques por parte dos neoconservadores ao longo das respectivas carreiras políticas precisamente pelas suas posições no domínio da política externa), mas o colapso da ideologia neoconservadora e a consciência crescente dos seus resultados desastrosos foi sem dúvida um dos factores que Donald Trump conseguiu capitalizar a seu favor contra o establishment Republicano.

O neoconservadorismo está hoje largamente desacreditado, mas os seus efeitos perniciosos persistem e está ainda por fazer um exercício de reconhecimento dos erros cometidos. Sem um reconhecimento pleno de que ao seguir a agenda revolucionária neoconservadora a direita errou gravemente e com terríveis consequências não será possível construir uma alternativa credível às correntes populistas que entretanto aproveitaram a oportunidade para se tornarem dominantes.

A caótica e calamitosa retirada do Afeganistão que manchou o início da administração Biden foi porventura a melhor ilustração simbólica do colapso do projecto neoconservador que havia capturado o centro do establishment décadas antes. Biden foi ao longo das últimas décadas uma das figuras chave do establishment que aplicou a doutrina neocon e a sua entrada na Casa Branca prometia restaurar a credibilidade internacional dos EUA com o “regresso dos adultos”. Foi também por isso especialmente sintomático que a sua primeira grande marca na política externa tenha sido uma das maiores humilhações dos EUA nas últimas décadas e que, não muito depois, se tenha seguido a invasão russa da Ucrânia.

Neste tema de crucial importância para o mundo nos dias de hoje é difícil não concordar, uma vez mais, com Viriato Soromenho-Marques : “Há um punhado de gente, a maioria não-eleita, com provas dadas de incompetência em estratégia e história militar, que campeia em Washington e Bruxelas. Foi a esse restrito clube, que as nossas degradadas e disfuncionais democracias concederam poder de vida ou de morte sobre o nosso destino coletivo.”

Evitar uma Terceira Guerra Mundial é a questão central da política internacional de hoje e o desfecho das próximas eleições presidenciais nos EUA será a esse propósito muito importante. Reconhecer e ultrapassar definitivamente o desastre neoconservador e combater a indústria da mentira organizada, tanto à esquerda como à direita, são condições necessárias (ainda que não suficientes) para a defesa e promoção da paz.