Quem chegasse a Portugal por estes dias e se fiasse no que por aqui se dizia e escrevia, acreditaria que algo de inédito tinha acontecido neste país. A saber, pela primeira vez teria tido lugar uma rusga policial, não se percebe se em todo o país ou se apenas na capital. Pois, e a não ser que estejamos perante um caso de absoluta desonestidade, só o facto de ignorarem que no país se fazem regularmente rusgas policiais, pode explicar o frenesi de indignação e espanto que se apossou de gente como Ana Gomes, Ferro Rodrigues, José Luís Carneiro… perante a fila de homens a serem identificados e revistados na Rua do Benformoso. Comentadores, pivots e especialistas de saberes vários amplificavam para níveis de fúria o horror que lhes inspirava tal intervenção. Em poucas horas a rusga policial foi apresentada como contraproducente por António Vitorino, inaceitável “até contra o terrorismo” para Ferro Rodrigues, e qualquer coisa e o seu contrário para Miguel Coelho, o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, que depois de ter levado meses a denunciar o “sentimento de perigo crescente por um grande número de moradores, com especial preocupação para os seniores e agregados familiares com crianças. Assaltos com recurso a armas brancas e de fogo, vandalismo nas ruas e nos edifícios, ocupações ilegais de imóveis, tráfico e consumo de droga na via pública, agressões, violações e até homicídios têm vindo a repetir-se“, veio agora criticar a intervenção policial que, para mais, considera que só “vai fomentar o ódio”.
Tudo isto por si só já é penoso, pois todos estes protagonistas sabem que estas operações acontecem com regularidade, estão legalmente enquadradas e são bem menos aparatosas que muitas outras que têm lugar na Europa. Mas a isto junta-se a desvergonha. Não, não é falta de vergonha. É desvergonha. Onde estava toda esta gente quando em Julho de 2022 a PSP levou a “cabo uma megaoperação de combate à criminalidade violenta associada à noite de Lisboa, com mais de 200 agentes empenhados“? Com o acompanhamento duma equipa de reportagem televisiva, a chamada Rua Cor de Rosa (um troço da Rua Nova do Carvalho junto ao Cais do Sodré) “foi cercada, centenas de pessoas ficaram impedidas de entrar e sair do cerco policial enquanto os agentes fiscalizavam estabelecimentos, realizavam buscas e revistavam pessoas.” Os clientes retidos dentro dos bares só saíam acompanhados pelos agentes que em seguida os revistavam. Encostados a uma parede, claro. (Sim, almas que agora despertais para a forma como se revistam pessoas, ficar de braços para cima apoiados numa parede era em 2022 a forma considerada adequada para revistar alguém em qualquer local do globo e escrevo era porque desde a semana que agora findou em Portugal a esquerda, os comentadores e muitos jornalistas descobriram que isso é um abuso, uma humilhação e uma violência.) O dr. Ferro Rodrigues, que agora acha que não se pode intervir assim nem contra terroristas, não me parece que então tenha ficado sequer perturbado, ou se ficou não o disse. Já o BE, PCP e Livre, que agora querem ouvir a ministra da Administração Interna, na altura não incomodaram José Luís Carneiro, que ocupava essa pasta e que agora, pasme-se, pede “explicações claras” a Luís Montenegro sobre a operação no Martim Moniz. Quanto a Pedro Nuno Santos, que se declarou “envergonhado e revoltado” com o Governo e com a PSP por causa da operação policial no Martim Moniz, percebe-se que em 2022 não se tenha sentido nem uma coisa nem outra com a operação policial na Rua Cor de Rosa: obviamente ainda estava a processar a vergonha e a revolta geradas pelo anúncio de dois novos aeroportos que fizera dias antes e que lhe valera ser o principal protagonista da mais acabrunhante conferência de imprensa de que há memória na política portuguesa (PREC incluído).
O que difere então da rusga policial na Rua Cor de Rosa em 2022 para a rusga policial na Rua do Benformoso em 2024? Metade da resposta encontrei-a no Polígrafo que lá foi poligrafar, seja isso o que for. Ao comparar a rusga policial na Rua do Benformoso em 2024, não com a da Rua Cor de Rosa em 2022, mas sim com uma que teve lugar no Porto em 2008, conclui o Polígrafo “A principal e incontornável diferença entre as fotografias é o tom de pele das pessoas encostadas à parede: se em 2008, no Porto, eram maioritariamente brancos, agora no Martim Moniz a situação foi bastante diferente.”
A outra e última metade da resposta prende-se obviamente com a cor do governo: rosa em 2022. Laranja em 2024. Ou, melhor dizendo, de esquerda em 2022, de centro ou centro direita em 2024. Em resumo, é tudo uma questão de cor. Cor do governo em funções e cor da pele dos revistados. Demagogia, portanto. Cada um faz a que pode. Mas não queiram fazer de nós parvos. E é melhor ficarmos por aqui que já se faz tarde e eu tenho de ir preparar o Natal.