Das mil vagas abertas este ano no concurso de recrutamento para agentes da PSP apenas foram preenchidas 793. Nunca nada de semelhante aconteceu no nosso país. Habitualmente o número de candidatos aprovados superava largamente o número de vagas, o que levava à constituição de reservas de recrutamento, com os candidatos aprovados a ficarem como excedentários. Agora os candidatos nem chegam para preencher as vagas quanto mais para manter reservas.

Porque aconteceu isto? Algumas das explicações mais frequentes e directas prendem-se com as questões materiais, sobretudo no início da carreira: o baixo vencimento ou a colocação longe de casa. Mas não só. Basta seguir as notícias e as fúrias soltas das redes sociais para perceber que será cada vez mais difícil alguém escolher ser polícia.

Quem ler, ver ou ouvir os nossos noticiários tem razões para acreditar que existe um problema das autoridades policiais neste nosso mundo democrático. (E só neste, claro, porque aceita-se como uma fatalidade a repressão nas ditaduras, como na China, na Turquia ou em Cuba.) Enquanto escrevo a França está mais uma vez a ferro e fogo por causa da nova lei de segurança apresentada pelo governo, para mais nos mesmos dias em que foi conhecido um vídeo onde se vê um homem a ser agredido por três polícias. Em Portugal, foi confirmada a condenação de oito polícias da Esquadra de Alfragide que, segundo deu como provado o Tribunal da Relação de Lisboa, a 5 de Outubro de 2015 terão agredido seis jovens. Em Espanha, com o caos instalados nas Canárias após a chegada este ano de mais de 18 mil imigrantes de Marrocos, exploram-se as falhas das autoridades policiais no controlo dos imigrantes para iludir o estrondoso erro político do governo de Sanchez quando o seu governo acolheu com pompa e propaganda os “refugiados” do Aquarius: as mafias da imigração perceberam que tinham rota livre e usam-na.

Por cá essas 207 vagas que ficaram por preeencher no concurso de admissão à PSP dão conta de um mal estar de que não se fala. Nem se quer falar. Afinal no mundo-bolha dos jornalistas, políticos e activistas (esse mundo-bolha em que se desliza por ciclovias e não em comboios apinhados, esse mundo-bolha em que só se ouvem as músicas do mundo e não o inquietante ruído de passos num corredor do metro, esse mundo-bolha em que se fazem compras em lojas tradicionais e não em supermercados de baixo preço em cujo interior os seguranças, quase sempre negros, parecem cada vez mais altos) nesse mundo-bolha, repito, os polícias só são notícia quando erram, como aconteceu na esquadra de Alfragide. Caso contrário, por exemplo quando são atraídos a emboscadas, resta-lhes o Correio da Manhã e umas notícias breves para que os fact check possam garantir que se abordou o assunto.

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Qualquer notícia acerca de um abuso cometido por polícias, seja em Portugal, em França ou nos EUA leva a que, passo seguinte, se questione a própria autoridade policial. Despedimento imediato ou a expulsão na hora dos agentes envolvidos é o mínimo que se exige. O passo seguinte tem sido apresentar-se a ausência de policiamento como algo de positivo: «Na “Zona Autónoma” de Seattle a polícia não manda, a comida é grátis e as ideias fluem» lia-se este ano no Expresso aquando dos tumultos que tiveram lugar nos EUA. Como era mais que expectável não passaram muitos dias até que se impusesse a lei do mais forte nas tais zonas livres de polícia: pilhagens, tiroteios, agressões sexuais… foram acontecendo mas na falta de um polícia, de preferência branco, para culpar, essa violência não gerou grande comoção. Em França, proliferaram as zonas onde “a polícia não manda” nem entra, são os chamados territórios perdidos da República. O alarme só tocou nas instituições quando o presidente Macron teve de ser retirado de um teatro pelos mesmos polícias cuja actividade inicialmente depreciara.

Entendamo-nos, é óbvio que existe violência policial. E abusos praticados por polícias. Mas também temos de entender que cavalgando casos de violência policial estamos a viver uma tentativa de deslegitimação das autoridades policiais nos países democráticos. Se a isto, que já não é pouco, se juntar a racialização de tudo o que acontece temos um inferno pronto a servir. Perante um quadro destes quem é se candidata à PSP sabendo que nos primeiros anos de serviço poderá ser colocado na periferia de Lisboa com um salário base que não chega aos 800 euros? E, mais importante ainda, como é a vida nessas periferias quando o policiamento falha? Ou nesse interior que, visto do mundo-bolha, parece um bilhete-postal bucólico mas tem esquadras e postos da GNR fechados à noite por falta de viaturas e homens?

Da próximas vez que se ouvir repetir como um dogma inquestionável – não há liberdade sem segurança – não podemos esquecer: este ano das mil vagas abertas para agentes da PSP apenas foram preenchidas 793. Para o ano como será?

PS. Onze milhões de euros por uma conferência que não vai passar de um evento on line? A Câmara Municipal de Lisboa e o Governo português resolveram manter o pagamento de 11 milhões de euros relativamente à edição da Web Summit de 2020. Só que a Web Summit de 2020 vai ser apenas um encontro digital. A śério que não vai ser invocada a cláusula do contrato que permite suspender o pagamento em caso de força maior como uma pandemia? Alguém está a gozar com os contribuintes portugueses!