De volta à pátria em 1721, Lady Mary Wortley Montague, mulher do embaixador inglês junto da Sublime Porta, trazia consigo uma novidade que fez furor na Corte: um tratamento para a varíola. Para compreender o que isso significava é necessário ter presente que, à época, a varíola matava, só na Europa, quase meio milhão de pessoas por ano. A mortalidade podia atingir os dois terços dos doentes e, dos que sobreviviam, um terço ficava cego e a maioria guardava horríveis cicatrizes.
A variolação, assim chamaram ao tratamento, consistia em raspar a pele com uma lanceta embebida no pus de um doente. O sultão otomano tê-lo-ia conhecido através de escravas importadas das estepes do Cáucaso mas há notícias do seu uso na Índia e na China desde o século X. Só 2 ou 3% dos variolados morriam: uma melhoria impressionante face à doença “natural”. Depois de testada em órfãos e condenados à morte, a variolação foi aplicada às filhas do Príncipe de Gales, depois adoptada pelas elites da Europa e, por fim, generalizada ao povo. Em 1757, em Gloucester, um rapaz de 8 anos foi variolado. Chamava-se Edward Jenner.
Jenner tornou-se aprendiz do cirurgião da aldeia e terá sido assim que ouviu um dia dizer a uma moça do campo que “nunca teria varíola nem ficaria com a cara feia e marcada” porque já tivera a “varíola das vacas”. A varíola bovina, além de algumas pústulas, que curavam rapidamente sem deixar cicatrizes, não parecia ter outros efeitos. Não tinha mortalidade associada, ao contrário da variolação. Em 1796 Jenner inoculou o pus da lesão de uma ordenhadora, Sarah Nelms, no braço de um rapaz, James Phipps, e, três meses depois, submeteu o rapaz ao processo tradicional de variolação: o rapaz não desenvolveu quaisquer sintomas. A reacção da comunidade médica aos resultados foi ambivalente. Mas uma avaliação nacional da resistência à varíola e à própria variolação entre quem tivera a varíola bovina, promovida pelo próprio Jenner nos anos seguintes, confirmou a sua tese.
A variolação acabou por ser proibida em Inglaterra em 1840. Cem anos antes fora um progresso fantástico. Mas não era suficientemente segura se comparada com o método de Jenner. Note-se que Jenner não descobrira nada de novo. Toda a gente sabia, nas regiões rurais, e provavelmente há vários séculos, que a varíola bovina dava imunidade para a varíola humana. E a variolação era usada no Ocidente há décadas. O que Jenner fez foi, a partir dessas duas informações, produzir uma ideia nova: variolar, não com o vírus da varíola mas com um vírus que imunizava igualmente contra a varíola mas não era mortal para as pessoas.
Jenner faz parte da nova medicina científica, que nasce no fim do século XVIII a partir da revolução iluminista da “filosofia natural”. Positivista na sua essência, herdeira do naturalismo renascentista, é a importância decisiva que atribui ao método experimental e à evidência que a torna única no panorama das “medicinas” (e suporta a sua espantosa eficácia). Isso não a impede de estudar e integrar a tradição hipocrática, o “corpus” galénico ou as medicinas árabe, indiana e chinesa. Mas uma coisa é aproveitar a informação contida nas práticas e tradições médicas do passado (ou de outras culturas), submetendo-a a validação de acordo com os cânones científicos, e outra é aceitá-la de forma acrítica e bovina.
Quando a OMS produz documentos como a “WHO Traditional Medicine Strategy 2014–2023”, em que se prevê integrar a medicina tradicional nos cuidados primários de saúde “tendo em conta as tradições e os costumes das populações e comunidades indígenas”sistemas de saúde”, está a aplicar os ensinamentos da campanha de erradicação da varíola nos anos 60 e 70, que mostrou a importância de obter a colaboração de xamãs, curandeiros e anciãos para a aceitação da vacinação pelas populações indígenas. Trata-se de aproveitar as estruturas, os agentes e a credibilidade das medicinas tradicionais de cada comunidade para atingir os objectivos básicos dos cuidados primários de saúde (prevenção da doença e promoção de hábitos saudáveis) em países com estruturas de saúde fracas ou inexistentes. Isto nada tem que ver com o folclore das medicinas “alternativas”, “integrativas” e afins que campeia nas sociedades ocidentais desde os anos 1990 e que, tal como o renascimento das teses criacionistas na América, traduz simplesmente ignorância e incultura científica. Não vale a pena elaborar sobre as razões do fenómeno.
Na página de abertura do site da Traditional Chinese Medicine World Foundation diz-se a certa altura: “somos uma comunidade que reconhece que cada um de nós cria a sua própria realidade”. Pessoalmente, se um dia precisar que me façam uma apendicectomia ou me tratem um AVC, não vou tentar criar realidade nenhuma. Vou chamar o 112.