Um dia depois de Ursula von der Leyen ter feito o discurso anual do Estado da União, desta vez dedicado à saúde pública e à defesa, a Austrália, os Estados Unidos e o Reino Unido anunciaram uma novo pacto de defesa, com o aplauso de outro países da Commonwealth e do Quad. Os dois atos revelaram profundas divergências na forma de fazer política.
Concentremo-nos na defesa, o elemento comum às duas iniciativas. Von der Leyen fez três propostas e usou o púlpito para anunciar subtis mudanças estratégicas. Em primeiro lugar, ressuscitou a ideia de uma força europeia de resposta rápida (subentende-se independente). Esta ideia emerge cada vez que a Europa se confronta com a sua impotência como aconteceu no Afeganistão. Em segundo lugar, propôs um Centro Comum de Conhecimento da Situação, uma espécie de sede para os encontros das informações das agências europeias, para fazer face às novas ameaças híbridas. Disse que era preciso, para que os Europeus pudessem tomar decisões informadas numa hipotética Comunidade de Defesa, que, se existe, anda arredada dos olhares públicos. Finalmente, anunciou que a Europa irá ter uma nova estratégia internacional, a Global Gateway, de que nada se sabe ainda a não ser que pretende lidar com o “mundo em transição”, desenvolver um conjunto de parcerias internacionais e que será anunciada na presidência francesa do Conselho da União Europeia, que terá lugar no primeiro semestre de 2022, com o alto patrocínio de Emanuel Macron, sempre empenhado nestas matérias.
Desta vez, von der Leyen não falou da já famosa “autonomia estratégica”. Ainda que tenha referido que a Europa percebeu a sua dependência em muitas frentes vitais, lá acabou por dizer que o aliado mais importante da União são os Estados Unidos e que a China é um “competidor” ao qual é preciso fazer face no seu centro nevrálgico – as Rotas da Seda. Aqui, a Europa vê-se obrigada a seguir os Estados Unidos na resposta com um plano de infraestruturas (não especificado) que contrarie o cerco chinês.
Tirando a ideia irrealista de uma força europeia autónoma da Aliança Atlântica, nada do que von der Leyen disse está errado. Pelo contrário. No entanto, não passa de um conjunto de intenções – ainda que algumas tenham calendário –, que, pela natureza do bloco europeu, levarão algum tempo a ser implementadas. O que parece que a Europa ainda não percebeu, ou simplesmente não consegue fazer face, é a necessidade de transformar intenções em realidades em tempo útil. A Europa está longe de partir da pole position e o mundo não espera pelas mudanças de presidência do Conselho. Menos ainda nas questões tecnológicas, em que o atraso face aos EUA e à China é clamoroso. E, sem isso, por melhores que sejam as intenções, haverá sempre dependência.
Entretanto, e sem avisos prévios, a Austrália, os Estados Unidos e o Reino Unido anunciaram ontem, um dia depois do discurso de von der Leyen, um pacto de defesa sem precedentes. O AUKUS, como vai ser chamado o pacto que deverá ser assinado poucos dias antes da primeira reunião presencial dos chefes de Estado do Quad (Estados Unidos, Austrália, Japão e Índia), tem como objetivo principal a criação de uma frota de submarinos nucleares australiana (não armados), com o objetivo assumido de conter Pequim na suas incursões no Mar do Sul da China e nas suas ameaças a Taiwan. Joe Biden afirmou que este pacto reforça “mais de 100 anos de alianças entre as três nações”, que precisa de evoluir, uma vez que todos “reconhecem o imperativo de assegurar a paz e a estabilidade no Indo-Pacífico”. Foi secundado pelo primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, e britânico, Boris Johnson, que, afirmaram que era preciso uma nova forma de relacionamento naquela zona devido à complexificação das relações de segurança. Os parceiros vão ficar também comprometidos a partilhar informação, incluindo na área da tecnologia de defesa. Além do pacto de segurança com os parceiros da Commonwealth, a Austrália anunciou o reequipamento da sua marinha, exatamente com os mesmos objetivos.
As reações não se fizeram esperar: a França revoltada com o cancelamento da compra de submarinos por parte da Austrália (falaremos deste assunto noutro artigo). Camberra opta, assim, por embarcações de tecnologia mais avançada; manifestaram-se também as autoridades japonesas e taiwanesas pelo passo importante para garantir a segurança do Indo-Pacífico, não só pelo rearmamento da Austrália, mas pelo envolvimento da Grã-Bretanha; e zangou-se a China, acusando os novos aliados de construírem blocos que excluem terceiros, devido a “preconceitos ideológicos” e à “mentalidade de Guerra Fria”.
A verdade é que os países da Commonwealth e do Quad (alguns sobrepõem-se) estão a formar uma parceria de segurança cada vez mais forte. Há uma urgência na contenção de Pequim que tem despoletado mudanças fundamentais no quadro de segurança do Indo-Pacífico que, se continuadas, poderão alterar profundamente a geopolítica internacional. E, neste aspeto, o AUKUS bem poderá ser um marco histórico. E a Europa não se consegue impor perante a celeridade política e tecnológica destas mudanças.
Evidentemente, um discurso, por mais importante que seja, não tem o mesmo impacto internacional que um pacto de defesa na região mais disputada do mundo. Mas não é possível deixar de notar a lentidão e hesitação europeia (a Europa vai criar, vai anunciar, vai fazer num futuro incerto, mas já atrasado) e a rapidez e assertividade destas novas parcerias de segurança na Ásia. Faz lembrar a história da lebre a da tartaruga. Mas no conto desta nova realidade, a lebre não fica a descansar nem adormece. A tartaruga pode até ser persistente, mas falta-lhe capacidade de agir num sistema internacional em que parar para refletir deixou de ser um luxo para quem quer ser uma grande potência.