A teoria das relações internacionais ensina-nos que há ameaças toleráveis e ameaças  intoleráveis. As primeiras são aquelas que sabemos que estão latentes, mas que a sua contenção é o suficiente para que não haja sobressaltos de maior, apenas ajustes quando a situação se altera; as segundas são aquelas que têm o potencial de transformar a política externa de um estado, ou de um conjunto de estados, quase de um dia para o outro e, por vezes, radicalmente. Putin tornou-se uma ameaça vital para a Europa que, comandada pela Alemanha, está a revolucionar a sua perceção do mundo, dos seus interesses e da sua segurança. 24 de fevereiro não foi apenas o dia 1 da Guerra da Ucrânia; foi também o primeiro dia do resto da vida da Europa. Até ao próximo sobressalto.

O primeiro sinal de mudança foi a imediata e forte coesão dos aliados Ocidentais. Praticamente sem discordâncias, desde o primeiro dia, voltou a haver um entendimento profundo entre as partes não só europeia e atlântica, mas também entre europeus, tantas vezes desavindos em questões de política internacional. Enquanto os Estados Unidos e a Grã-Bretanha adotaram o papel de agentes coercivos, cujo sucesso depende do alinhamento europeu, a França e a Alemanha abriram a linha diplomática que permite a criação de um grupo de mediadores – que se está a esboçar entre os dois países europeus e a China – com poder real para levar a Rússia a pôr fim ao conflito (ainda que não saiba quando estarão reunidas as condições para que isso aconteça).

Parte do que permite à Europa ter este papel tão preponderante prende-se com a mudança estratégica, quase revolucionária, que começou na Alemanha. Apenas 4 dias depois do início da Guerra da Ucrânia, Olaf Scholz foi ao Bundestag fazer o discurso que mudaria os destinos da Europa. Em cinco pontos, explicou em que medida iria mudar a política externa da Alemanha.

Em primeiro lugar, comprometeu-se a aumentar significativamente a ajuda militar à Ucrânia, porque esta não está a lutar só pela sobrevivência do seu país, mas também pelos valores europeus. De seguida, afirmou o compromisso alemão com o Artigo V do Tratado do Atlântico Norte, e comprometeu-se a apoiar as forças militares da NATO no flanco leste, com o intuito declarado de mostrar à Rússia que Berlim está determinada na sua dissuasão. Em terceiro lugar, anunciou um fundo especial de 100 mil milhões de euros para a renovação das forças militares alemãs. Declarou que era absolutamente necessário investir “consideravelmente” na defesa do país, porque o que está em causa é a segurança do estado e dos seus valores. Disse ainda que a Alemanha passará a despender dois por cento do seu PIB em defesa, porque, subentendeu-se, a NATO é o garante da segurança europeia e não tem substituto (ainda que o “pilar europeu” da aliança possa vir a ser uma realidade). Finalmente, apelou aos restantes países da Aliança Atlântica que se alinhassem com Berlim e fizessem o mesmo. Em suma, a Alemanha, sempre tão reticente no que respeita ao uso da força, veio prometer

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ao mundo que se tornará uma potência militar, que pretende que os outros estados europeus sigam o seu exemplo. E de forma mais ou menos explícita, tornou-se líder efetiva de uma europa carente de orientação.

As democracias são avessas à mudança e a Europa, que critiquei muitas vezes pelo seu fechamento numa Torre de Marfim que mais tarde ou mais cedo seria abalada, está a sair do seu longo intervalo da História. Para que isso acontecesse foi preciso ver surgir uma ameaça vital. Mas da ameaça construiu-se uma renovada liderança que tem condições para transformar a Europa por muito tempo.

Esta mudança vai exigir sacrifícios. Aliás, a própria Guerra da Ucrânia – e as sanções que já estão a ter impacto na nossa economia e terão muito mais daqui para a frente – já seria o suficiente para sentirmos que nada será como antes. Mas a história ensina-nos que sem adaptabilidade às mudanças – e, principalmente, às ameaças – os estados podem perecer ou tornar-se insignificantes. A Europa percebeu, e tomou a decisão certa. Falta saber de que forma os Estados Unidos readaptarão a sua política externa, que não poderá manter-se como estava. E como se coordenarão com a Europa daqui para a frente. Mas isso é outro assunto, que certamente fará correr muita tinta nos próximos tempos.