Custa entender como é que o PS se meteu nesta. Refiro-me à tentativa de introduzir na Lei da Nacionalidade alterações que limitam drasticamente, se não inviabilizam, o acesso dos descendentes de judeus sefarditas à nacionalidade portuguesa, na sequência da lei de retorno de 2013. Ainda ninguém entendeu se é uma iniciativa do PS, ou apenas do grupo parlamentar, ou somente de alguns deputados. Há ali um anti-semitismo objectivo. Podia invocar-se o ditado popular do pato: “Se parece um pato, nada como um pato, grasna como um pato, então provavelmente é um pato.” Mas creio que os promotores não são anti-semitas, o que ainda mais surpreende. Se fossem anti-semitas, era fácil de entender; assim, fica muito difícil.

A lei vigente entrou em vigor em 2015. Na prática, tem apenas cinco anos. Resultou de uma iniciativa do PS, por impulso de Maria de Belém, e doutra do CDS, por impulso meu. Constou de projectos de lei com esse único objecto. Não entrou na 25.ª hora, pendurada disfarçadamente como adereço doutras questões. Nada se escondeu, tudo foi claro e afirmado. A lei foi aprovada por unanimidade, facto raríssimo no nosso parlamento, como em parlamentos democráticos. Se o PS queria, agora, alterar esta lei, tinha de enfrentar a questão nos mesmos termos, entrando no debate parlamentar pela porta grande, em vez de, a salto, pelo muro das traseiras ou um postigo lateral, como fez. Apresentaria um projecto próprio, em vez de se atrelar a outros, que versam sobre questões totalmente distintas. Apresentaria um projecto de lei, não uma hesitante proposta de alteração. Levaria os seus argumentos ao grande palco do debate na generalidade, em vez de ir pela calada. O ataque, em modo traiçoeiro, a uma lei bem-sucedida e aprovada por unanimidade, gera desconfiança: porquê, em lei tão importante, querer mudar furtivamente? Só podia acontecer esta controvérsia.

Em artigo de opinião publicado há dias, a deputada Constança Urbano de Sousa, vice-presidente do grupo parlamentar do PS, principal impulsionadora da proposta, fala no “regime especial de naturalização dos descendentes de judeus sefarditas” e repete mais três vezes esta expressão “regime especial”.  A qualificação não está errada. Juridicamente, está certa. Mas, dizendo só isto, um leitor desinformado ficará com a ideia de que, em 2013, se abriu um regime unicamente para os descendentes dos sefarditas expulsos de Portugal nos sécs. XV e XVI. Daí a passar-se a uma ideia de privilégio, é um saltinho.

A verdade não é essa. O regime para os descendentes dos sefarditas foi criado à imagem e semelhança do regime geral aplicável a “descendentes de portugueses” e a “membros de comunidades de ascendência portuguesa”. Este regime consta do n.º 6 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, nos exactos termos que estão estabelecidos desde a versão original da lei há quase 40 anos, em 1981. A norma especial para os judeus sefarditas foi aditada, em 2013, como n.º 7, logo a seguir ao n.º 6, porque é uma sua concretização específica dentro das comunidades de ascendência portuguesa ou dos descendentes de portugueses.

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Em que consiste este regime? Consiste em permitir a naturalização com expressa dispensa dos requisitos das alíneas b) e c) do n.º 1 do mesmo artigo 6º. A alínea b) exige aos candidatos à naturalização “residirem legalmente no território português há pelo menos cinco anos” – este requisito é dispensado. A alínea c) exige “conhecerem suficientemente a língua portuguesa” – este requisito também é dispensado. Mas a dispensa destes requisitos não foi prevista para os judeus sefarditas. Nada disso. Existe para todos os descendentes de portugueses e membros de comunidades de ascendência portuguesa, além de outros tipos de candidatos previstos no art.º 6º, n.º 6, desde há 40 anos. Ou seja, o dispensado nem é só de agora, nem é só para os sefarditas.

Não conheço a história concreta da aplicação do n.º 6 do artigo 6º, mas, no tocante aos “membros de comunidades de ascendência portuguesa”, estes casos poderão, em abstracto, corresponder a casos de comunidades portuguesas mais recentes fruto da imigração, ou a casos mais antigos da nossa história ultramarina, em Malaca, no Sri Lanka, na ilha das Flores (na Indonésia), ou noutras paragens das Américas, África ou Oriente.  As comunidades de judeus sefarditas portugueses enquadravam-se também aqui. O n.º 7 veio apenas acabar com qualquer dúvida e fixar, na especialidade da sua condição, os modos de, aqui, poder reconhecer a relação de descendência/ascendência portuguesa.

Por isso, será violador da igualdade que o PS (ou outro qualquer) venha introduzir, no n.º 7 e apenas para os judeus sefarditas, uma exigência que não seja simultaneamente imposta a todos os outros do n.º 6. Essa quebra da igualdade apenas para os sefarditas, além de inconstitucional, seria qualificada de anti-semita. Quem discrimina contra judeus ou por causa deles, age objectivamente em anti-judaísmo, por mais divagações que se faça.

Na fundamentação da proposta restritiva, os deputados do PS escrevem: “(…) verifica-se que desde 2017 existiu um aumento exponencial dos pedidos de naturalização por parte de judeus sefarditas (…), tendência que se vai agravar, pelo facto do processo de naturalização em Espanha ter terminado em outubro de 2019. (…) Acresce o crescimento igualmente exponencial de pedidos de naturalização dos filhos (…) e dos cônjuges (…).” Ou seja, para estes deputados do PS, o subtexto é: “Podem vir, mas não venham muitos. Sobretudo não tragam filhos e cônjuges.”

Faltaria acrescentar, de modo consciente ou inconsciente, o pensamento de que o rei D. Manuel fez muito bem em expulsar os seus ancestrais e que bem podiam deixar-se ficar lá por fora. O legislador de 2013, porém, não foi isso que quis. E ainda bem, porque mostrou uma visão de bem, uma visão de futuro: os judeus sefarditas portugueses de volta, de corpo inteiro, à comunidade nacional. A lei de 2013 quere-os na comunidade nacional. Recebe-os porque entende que fazem parte dela. Não os estranha, nem torce o nariz ao número.

O que a lei diz é: “São bem-vindos. Que bom podermos abraçar-nos outra vez.” O que a lei não diz, nem pode dizer, é: “Não nos pertencem, não vos queremos.” Outra questão é a dos eventuais abusos – já lá iremos. Mas, à partida, importa ter presente que o número em si não é um abuso. O número é a medida do sucesso da lei de reconciliação e de retorno.

No mesmo artigo há pouco referido, Constança Urbano de Sousa escreve: “Não se pretende revogar este regime especial (o que seria um erro histórico, mas tão só densificar o seu objetivo que é e sempre foi ‘promover o retorno dos judeus expulsos’(…)”. O uso do verbo “densificar” é sintomático. Palavra descoberta há alguns anos, entrou logo no uso corrente na nossa língua, na conversa política. Ninguém sabe exactamente o que quer dizer. Densificar? É um daqueles bordões que usamos em automático, porque parece bem e realmente nada compromete. O que é “densificar o objectivo” de um dado regime legal? Se se pretende dizer torná-lo mais denso, isto é, adensar (que é o que o verbo significa), acertou: as propostas tornariam o regime tão denso que seria quase revogá-lo.

A última proposta de alteração do PS constou ser uma melhoria. Nada disso. Corresponde realmente a um agravamento muito significativo. Os deputados do PS comunicaram que deixavam cair, como requisito prévio, a exigência de dois anos de residência em Portugal e, em seu lugar, passavam a exigir “que possuam ligação efetiva à comunidade nacional”. À primeira vista, soa bem a qualquer desconhecedor das peculiaridades do Direito e suas malandrices. É uma expressão melodiosa. Mas, no caso concreto, é um ardil, uma armadilha.

Em primeiro lugar, a expressão não faz falta, não é precisa para nada: a lei actual, no tal n.º 7 do artigo 6º, já determina aos descendentes dos judeus sefarditas que façam a “demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa” e cumpram ainda “requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal”. Em termos coloquiais, não é isto evidência de ligação efectiva à comunidade nacional? A melodia boa já está na norma em vigor. E, como tenho vindo a referir, o decreto-lei que regulamenta a lei pode ser completado e melhorado no tocante quer à pertença, quer à ligação a Portugal, em termos adequados à História e às condições destes compatriotas que se candidatam a obter esse reconhecimento.

Em segundo lugar, a expressão que o PS quer – “que possuam ligação efetiva à comunidade nacional” – é de falsa inocência e inteiramente inaplicável sob pena de destruir a lei. Louve-se a honestidade do deputado Pedro Delgado Alves, ao ter referido como paradigma daquele requisito o critério que “já hoje está previsto na lei da nacionalidade para os netos dos portugueses.” Não curarei aqui dos erros cometidos no regime definido para netos de portugueses. Mas, perante disposições legais e regulamentares muito mal feitas, arrisco que este regime recente, contra a tradição e a jurisprudência dominante, apertou muito o requisito da “ligação efetiva à comunidade nacional”, cuja definição normativa ficou muito poluída, senão descaracterizada. Lendo a regulamentação de 2017, exige-se três ou cinco anos de residência em Portugal e conhecimento suficiente da língua portuguesa, como se depreende também de um trecho do já citado artigo da deputada Constança Urbano de Sousa: “Se Blaise fosse neto de um emigrante português originário de Bragança, do Porto ou dos Açores não teria, hoje, o seu desejado passaporte europeu, pois teria de ter provado uma efetiva ligação à comunidade nacional, materializada no conhecimento da língua portuguesa e em contactos regulares com Portugal, o que só é obrigatoriamente reconhecido se residir aqui 5 anos ou, sendo estudante, residir três anos (artigo 1.º e artigo 10.º-A do Regulamento da Nacionalidade).” Este é, de facto, o paralelo que os deputados do PS têm em mente aplicar contra os judeus sefarditas.

A ideia é um absurdo e a negação total do regime vigente. Um regime estabelecido para naturalização de membros de comunidades de ascendência portuguesa, que, por natureza das coisas, vivem e trabalham no estrangeiro, não pode ter como requisitos a exigência de residência em Portugal (talvez mesmo só em Lisboa e, melhor ainda, apenas na Rua do Ouro…), nem de conhecimento suficiente da língua portuguesa. Essa é precisamente a razão de ser do n.º 6 do artigo 6º da lei (desde 1981) e, na sua esteira, do n.º 7. Dizer que se dispensam esses requisitos para, afinal, os restabelecer pesadamente, sob o chapéu da “ligação efectiva à comunidade nacional”, é agir à espanhola: anunciar que se abre uma porta e efectivamente trancá-la à chave.

Um breve aparte para salientar que o “Blaise” há pouco referido foi o único caso concreto de “abuso” que Constança Urbano de Sousa encontrou e, por isso, usou para ilustrar o flagelo. Acontece que Blaise Baquiche respondeu com simplicidade tocante. Mostrou, no seu texto, a ligação a Portugal da sua tradição e da sua família. Pouca sorte… Vale muito a pena ler o artigo do português Blaise Baquiche: “Não siga os passos da Grã-Bretanha: uma refutação a Constança Urbano de Sousa”.

Os deputados do PS também falam muito da legislação homóloga em Espanha. Devem deixar de falar nisso. Não tenham vergonha de o reconhecer: Portugal fez melhor. Já se falava da lei em Espanha antes de ser feita a nossa, em 2013. Concluída depois da nossa, já acabou – fixaram-lhe um prazo, e curto (2019). Houve inúmeras frustrações e muitas queixas contra as muitas dificuldades. Dirigentes espanhóis reconheceram terem feito as coisas mal. Fizeram. A muitos pareceu que Espanha abriu as janelas, mas fechou as portas. Nós fizemos melhor.

Espanha, aliás, nunca pode ser citada como exemplo e inspiração em matéria de judeus sefarditas. A vez anterior em que seguimos o exemplo castelhano foi quando os expulsámos aos milhares. Depois de, no tempo de D. João II, termos recebido os expulsos de Espanha, acabámos por também os expulsar a todos, anos depois, reinando D. Manuel. Não é boa ideia olharmos para a vizinhança. Actualizemos o ditado: “De Espanha, nem bom vento, nem bom argumento.”

Também não passam sem reparo outras afirmações recentes do deputado socialista Pedro Delgado Alves: “a lei tem gerado alguma preocupação por parte das instituições europeias e também de países como os EUA e o Canadá, com os quais Portugal tem um programa de isenção de vistos”. Constança Urbano de Sousa reflecte, mais discretamente, esta preocupação no artigo que tenho citado: “O facto de Portugal estar integrado na União Europeia dá à nacionalidade portuguesa uma dimensão adicional inerente à Cidadania Europeia (…). Esta é uma vantagem inegável de quem tem um passaporte português, mas da qual também decorrem obrigações adicionais perante estes nossos parceiros.”

Não contesto a doutrina, que conheço e professo. Nacionalidade é assunto sério, não um objecto mercantil. Necessitamos de conhecer e avaliar casos concretos. Se são todos casos como Blaise, estamos conversados: não têm razão. E, se os casos são tão maus, por que são despachados favoravelmente, quando o poder de decidir é caso a caso e sempre discricionário?

Quem da União Europeia comentou? Dos EUA quem falou? Quem objectou pelo Canadá? Disseram o quê? Que reparos houve? Ou pediram esclarecimentos? Portugal respondeu o quê? Isto é que precisamos de saber. Sem o sabermos, é ilegítimo avançar com semelhantes argumentos infundados. Só servem para alimentar populismos anti-semitas, cujo discurso lemos com frequência nas caixas de comentários, quando estas questões se discutem.

Não acredito – de todo – que União Europeia, Estados Unidos da América e Canadá se oponham ao regime de naturalização de membros de comunidades de ascendência portuguesa, incluindo descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal. Não podemos reparar a expulsão, mas podemos favorecer a reunião e pôr termo à separação. É o que a lei de 2013 fez.

Os membros das comunidades sefarditas de ascendência portuguesa podem solicitar a nacionalidade, porque já são Portugal. São tão Portugal quanto outras comunidades portuguesas no estrangeiro; e sê-lo-ão tanto mais intensamente, quanto mais formos aplicando a lei e apagando a separação. A lei olha para essas comunidades, esses núcleos de descendentes dos judeus sefarditas portugueses expulsos como pedaços de nós que nós próprios arrancámos. A lei quer reunir tudo outra vez. Por isso, quando se dança ao sabor da expressão “ligação efectiva à comunidade nacional”, a dúvida é descabida: eles não têm só ligação; fazem parte da comunidade nacional. Fazem parte de uma etapa triste da História, mas fazemos parte da mesma comunidade. Reconstruí-lo e reconhecê-lo é abrir uma etapa feliz outra vez.

Combater abusos? Com certeza. Preveni-los onde há risco? Certamente. O caminho não é mexer na lei, mas aprofundar, no regulamento, a definição dos dois traços que já constam da lei. Recordo o primeiro: “demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa”.  E recordo o segundo: “requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal”.

Seria enorme erro mexer na lei neste particular, sobretudo neste contexto infeliz e depois da péssima publicidade que tem sido feita. Depois de Portugal ser aplaudido e apreciado internacionalmente com a lei de 2013, iria infligir-se forte dano reputacional ao aprovar uma “lei contra os judeus”, como todos a olhariam. E deitaria fora o extraordinário potencial de reconciliação e reunião histórica, que a lei de 2013 abriu e está a dar os primeiros passos.

Curiosamente – ou talvez não – os únicos que não se queixariam muito e iriam beneficiar com os cacos do regime jurídico que sobrassem das propostas do actual PS, seriam precisamente aqueles que olham para a nacionalidade como bem transacionável e não querem mais do que o passaporte de conveniência. Teriam sempre os advogados conhecedores e experientes, o tempo que fosse preciso e o dinheiro necessário para investir no objeto cobiçado. É o sistema de “criar dificuldades para vender facilidades”. Estes negócios prosperam sempre nos regimes administrativos de portas entreabertas.

Quem romperia connosco seriam aqueles que olham esta oportunidade com os olhos do coração e da tradição, precisamente aqueles que mais queremos connosco. Há inúmeras evidências inspiradoras. Para citar só algumas: o texto de Blaise Baquiche, que já referi; algumas histórias concretas contadas por Esther Mucznick, há dias; e várias reportagens na comunicação social nos últimos anos. Esses judeus sefarditas portugueses teriam uma desilusão enorme, que os mais velhos e experientes acompanhariam: “Não vos dizia. É gente inconfiável.” O povo judeu tem, na verdade, vasta experiência de ver fechar portas e braços que antes pareciam abrir-se. Nunca mais quereriam ligar-se a nós. Usariam talvez os benefícios a que tivessem direito, mas provavelmente já não quereriam fazer comunidade connosco, reconstruir a comunidade nacional. A confiança estaria rompida. O maior encanto da lei estaria quebrado.

A lei de 2013 é uma grande lei. Não a manchem. Não a estraguem.