A Guerra Fria entre a União Soviética e o Ocidente não decorreu sem algumas regras. Uma delas era evitar confrontos directos. Guerras por procurador, em que um dos lados armava um adversário local do outro, eram aceitáveis. Mas não mais. A cautela tinha uma razão óbvia: o armamento nuclear, e o risco da sua utilização numa guerra aberta entre o Ocidente e a União Soviética. Tudo isso fazia sentido, e ainda faz sentido, agora que já não há União Soviética, mas há a ditadura de Putin.
É por isso que nada há a dizer acerca do cuidado da NATO em furtar-se a situações de combate com a Rússia de Putin. Mas já há, no entanto, algo a dizer acerca da aparente falta de um cuidado similar do lado de Putin. A invasão da Ucrânia revelou assim uma estranha assimetria entre a Rússia de Putin e a NATO, e é óbvio que essa assimetria é uma grande vantagem para Putin. Para já, permitiu-lhe invadir mais um país, e, segundo a táctica refinada na Chechénia, começar a cercar e a destruir as suas cidades. Está para se saber até onde é que Putin aproveitará a relutância ocidental em fazer-lhe frente no terreno. Não vale a pena correr o risco de uma guerra mundial por causa da Ucrânia? E pela Estónia, vale? Ou pela Lituânia? Ou pela Polónia?
Como é que se chegou a esta assimetria? Se perguntássemos a Putin, o ditador falar-nos-ia talvez da “decadência” do Ocidente, e da ansiedade com que os ocidentais fogem de todos os riscos. Nos anos 80, a esquerda pró-soviética marchava nas capitais europeias aos gritos de “better red than dead”, que poderíamos traduzir muito exactamente por “mais vale viver ajoelhado do que morrer de pé”. Teremos chegado a esse ponto? Estamos medrosos? Não, é pior do que isso: estamos iludidos sobre o nosso poder.
Na Guerra Fria, a União Soviética quebrou primeiro. Dessa vitória sem combate, tirou muita gente no Ocidente a lição de que, contra sistemas políticos menos eficazes em gerar inovação e conforto, não precisava de lutar para vencer. A história estava do seu lado. Bastaria aos ocidentais ficarem sentados no sofá, para verem o mundo render-se às suas ideias e modo de vida. A globalização, só por si, resolveria tudo. Sim, a China ainda teria uns anos de ditadura comunista e a Rússia de caos pós-comunista. Mas encaixadas no comércio mundial, acabariam por democratizar-se ou, no mínimo, por ter interesse na manutenção da ordem global. Daí, a Ocidente, a redução dos gastos com a defesa, a retirada militar do resto do mundo (que só Bin Laden perturbou brevemente), e a dependência energética e industrial da Rússia e da China. Os ocidentais acreditaram mesmo que podiam comprar a liberdade, como compram gás russo ou telemóveis chineses. Mas as compras de gás e de telemóveis não democratizaram a Rússia e a China, nem sequer as colocaram do lado do Ocidente.
Esta visão deriva de uma ideia errada da Guerra Fria. O Ocidente não prevaleceu simplesmente por ser mais rico, mas porque nunca houve dúvidas da sua determinação em defender-se. Em 1948, os EUA e os seus aliados não deixaram cair Berlim Ocidental; em 1950, combateram pela Coreia do Sul e arriscaram mesmo um choque com a China comunista; em 1962, os EUA enfrentaram a União Soviética em Cuba. Nem tudo correu bem. A ajuda ao Vietname do Sul contra a agressão do Norte comunista, a partir de 1965, correu mesmo mal. Mas a disponibilidade das nações ocidentais para combater foi sempre clara e ajudou a União Soviética a perceber que não podia passar certos limites. Em 1962, Khrushchev recuou em Cuba. Durante a Guerra Fria, a União Soviética teve tanto receio de uma guerra com o Ocidente como o Ocidente de uma guerra com a União Soviética. Foi essa reciprocidade no medo que garantiu a paz na Europa até 1989. É essa reciprocidade que tem de ser claramente restabelecida agora com a Rússia e com a China, como única maneira de evitar guerras maiores.
Não, não estou a recomendar um confronto directo da NATO com a Rússia na Ucrânia. Os ucranianos, depois de um mês de invasão, já provaram que não precisam de quem combata por eles. Mas precisam certamente de armamento, de informações e de outros apoios. O Ocidente deve fazer o que aparentemente já está a fazer: submeter a ditadura de Putin a todas as sanções e dar aos ucranianos os meios necessários para resistirem à invasão e ocupação estrangeira. Mas deve fazer mais: esclarecer “linhas vermelhas” (por exemplo, sobre a violação de fronteiras da NATO ou o uso de armas nucleares na Ucrânia) e não deixar a Putin qualquer dúvida de que sofrerá consequências se as pisar; e declarar, como a ONU já declarou em 2014 no caso da Crimeia, que nunca reconhecerá qualquer alteração de fronteiras imposta pela violência.
Irrealismo? Irrealismo é pensar que Putin passará a ser um bom rapaz se lhe derem Odessa para juntar à Crimeia. Ganhando, não ficará por ali, porque é o ditador de um Estado falhado, que só pode manter-se pela expansão imperial. Por isso, o Ocidente não tem outra opção senão fazê-lo perder a face na Ucrânia, como explicou ontem a primeira-ministra da Estónia. É arriscado? Mais arriscado é deixá-lo convencido de que tem toda a licença para mais aventuras violentas. Só uma derrota fará a ditadura russa recuperar a sua parte do medo. Trata-se da Ucrânia, o que já seria muito, mas não se trata só da Ucrânia. Trata-se da segurança das nações ocidentais e da sua liberdade: porque se alguma coisa esta guerra já provou, é que a liberdade não se compra, defende-se.