Poucas metáforas exprimem tão bem a essência dos tempos que vivemos como a de “modernidade líquida”, proposta por Zygmunt Bauman. A estabilidade do passado deu lugar a um mundo líquido caraterizado pela rapidez, permeabilidade e mudança. Quando antes queríamos a continuidade, agora valorizamos a flexibilidade nas atitudes, no trabalho e nas relações sociais. Na sociedade atual, o cimento da tradição, e até a confiança nas conquistas da ciência e da tecnologia, dissiparam-se. Deram lugar às autoridades múltiplas e contraditórias, de peritos e comentadores, fazendo recair sobre cada um de nós a decisão última sobre onde está a verdade e como decidir. Saber se as vacinas são seguras ou o que vestir para ir trabalhar não depende dum consenso científico ou de normas sociais partilhadas, mas duma decisão individual. Cada pessoa ocupa o centro do seu mundo e assume os riscos da sua liberdade.

A incerteza faz parte da condição humana e o otimismo de Fukuyama quando anunciou, em 1992, o fim da história, com o triunfo da paz e da democracia, não passou duma miragem. A globalização, as ruturas tecnológicas, as crises económicas, o terrorismo, os problemas ambientais, a crise do estado social e as descobertas da ciência, generalizaram os sentimentos de incerteza em relação ao futuro. Que inovações disruptivas nos vão surpreender? Qual o impacto das alterações climáticas na economia e na vida quotidiana? A robustez do sistema financeiro consegue evitar novos colapsos? O que nos reserva a volatilidade dos mercados? Onde nos pode conduzir a manipulação genética? Quais os efeitos da automação, no emprego? Os movimentos inorgânicos ameaçam o futuro da democracia? Ao mesmo tempo, a fragilidade dos poderes do estado, face a problemas que não conhecem fronteiras, cria o sentimento de que ameaças como a crise climática, a grande criminalidade e as operações do capitalismo financeiro se passam numa “terra de ninguém”.

São estes riscos incertos que nos desafiam. São riscos que, ao contrário dos do passado, têm impactos globais e impossíveis de calcular, consequências irreparáveis e ilimitadas no tempo, e a responsabilidade está diluída. Escapam, por isso, em grande medida, a critérios de cálculo e de controlo.

A incerteza é uma fonte de angústia e de stresse, e esforçamo-nos por reduzi-la. Mas é também um pilar da democracia. As sociedades livres aceitam a incerteza como um axioma. Não há verdades únicas e oficiais. Admite-se a pluralidade, a discussão de ideias e a negociação. Pelo contrário, as sociedades totalitárias eliminam a incerteza com dogmas que impõem um modelo de sociedade e de cidadão. Os totalitarismos impedem o debate, criando um mundo de certezas e um futuro previsível. As democracias estimulam a tolerância e a diversidade. Por isso, criam universos complexos e caóticos, onde cabe a cada um dar um sentido à realidade e decidir o seu destino. A diversidade gera mais alternativas, favorece a criatividade e é mais capaz de lidar com a incerteza. O caos é um mundo inesgotável de possibilidades.

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Tudo isto coloca, hoje, as lideranças perante desafios sem precedentes. Os líderes são obrigados a resolver problemas para os quais não há soluções testadas e a enfrentar mudanças disruptivas, quando as pessoas precisam mais de estabilidade e de esperança no futuro. Espera-se que sejam capazes de dar sentido à complexidade, que antecipem as ameaças e tomem decisões rápidas e justas, em situações de grande volatilidade. São olhados como fontes de segurança e exemplos inspiradores.

A recente crise pandémica foi o cenário para novas lideranças emergirem e outras soçobrarem. Alguns falharam na sua missão, mas outros tomaram decisões que salvaram milhares de vidas e reestruturaram as suas organizações salvaguardando os empregos. Mostraram visão sistémica, sentido estratégico, resiliência e flexibilidade. Souberam alimentar a esperança e a confiança, e mantiveram uma relação empática com os outros.

Mas é também na incerteza que a liderança revela o seu lado negro. Os sentimentos de insegurança favorecem o apoio a lideranças carismáticas e a personalidades narcísicas, que propõem visões dogmáticas, ordem e previsibilidade. Em contextos de incerteza não faltam os falsos messias e os que estão dispostos a trocar a liberdade pela promessa de um futuro em segurança. Os radicalismos surgem quando as sociedades atravessam crises e domina a incerteza. Os exemplos estão aí e podem ser uma séria ameaça à unidade da Europa. A incerteza é o chão da liberdade, mas é também a fonte das ameaças que podem destruí-la. É por isso que a liberdade e a democracia são construções permanentes.