As últimas semanas surpreenderam com uma série de revelações que levam a questionar o desempenho dos líderes políticos e o futuro da democracia. Uma empresa financiada por dinheiros públicos despede trabalhadores e reduz salários, ao mesmo tempo que atribui elevadas indemnizações aos administradores. Um ministro que dizia desconhecer a situação consulta o WhatsApp e lembra-se que, afinal, estava informado e tinha aprovado as indemnizações. Uma secretária de Estado ignora a lei das incompatibilidades e propõe-se ir administrar uma empresa que antes tinha apoiado com ajudas do estado. Uma câmara municipal nomeia primeiro o responsável e a seguir abre concurso para preencher o lugar. Um ministro “premeia” com a presidência de uma empresa pública o responsável pela derrapagem orçamental de uma obra a que os auditores internos atribuíram “inconformidades legais”. Esta é só uma parte do rol de casos que envolveram governo e oposição.

Os comentários de responsáveis políticos, académicos e jornalistas têm-se centrado nas complexidades jurídicas e nas implicações políticas que estes casos envolvem, deixando a sensação de que tudo se resolveria e os danos ficariam reparados, com a queda do governo e a realização de nova eleições, com as conclusões de uma comissão parlamentar de inquérito, auditorias independentes, pareceres da IGF e sentenças dos tribunais.

É, contudo, uma visão redutora do que está realmente a acontecer e das suas verdadeiras consequências. Independentemente do que se venha a apurar, está lançada uma nuvem de suspeição sobre as estruturas governativas da sociedade, com consequências fracturantes. Por um lado, o governo refugia-se em argumentos de legalidade e ignora a relevância ética dos problemas, enquanto a opinião pública reclama em nome da moral social e do senso comum. Por outro lado, destrói-se a confiança no sistema político e quebra-se a coesão social.

O reducionismo legalista e a desvalorização da dimensão ética têm um bom exemplo nas palavras de António Costa quando Mário Centeno pediu a exoneração de ministro das Finanças para logo ser indicado, pelo seu ex-secretário de estado e sucessor no ministério, para governador do Banco de Portugal. Reagindo às muitas críticas feitas a esta transumância, António Costa atirou esta frase lapidar. “Mário Centeno praticou algum crime?”. O primeiro-ministro deixou bem claro que tudo é possível desde que não seja punido por lei, parecendo desconhecer que os limites do comportamento não estão apenas na legalidade mas também na legitimidade ética.

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A lei incorpora mínimos éticos, mas não esgota a ética. Por isso, a avaliação ética tem de complementar o cumprimento das obrigações legais. É essa reflexão que ainda não foi feita sobre os casos que estão a ocorrer. Os controlos do estado podem apurar a legalidade do que se passou, mas o essencial está nos princípios e valores que orientam a conduta dos protagonistas. Os que escolheram os candidatos a cargos governativos, os que aceitaram os lugares e os que tomaram as decisões. A relativização da ética, o refúgio no legalismo, questionários sem sentido e o apelo à “ética republicana”, em vez do recurso à universalidade dos valores e à consciência individual, provocam o descrédito nas instituições e a indignação dos cidadãos.

Por outro lado, é bom não esquecer que o comportamento dos responsáveis políticos é permanentemente escrutinado pela opinião pública, não só em termos de legalidade, mas em função de um sistema de princípios e maneiras de agir, partilhados em sociedade, isto é, duma moral social. O conflito entre esta construção social normativa e a conduta individual dos actores políticos é outro factor que contribui para a falta de reconhecimento das instituições e dos seus responsáveis.

Mas o somatório de casos vindos a público, para além do alarme social que provocam, tem consequências graves e de longo prazo, no plano psicossocial. Afecta a confiança nas instituições e na classe política, num triplo sentido. A confiança contratual, na medida em que põe em causa a vontade de os cidadãos dependerem daqueles que governam, prescindindo de parte da sua liberdade para que funcione o estado de direito. A prática de ilegalidades e a quebra de normas éticas fragiliza o contrato de confiança que legitima o papel dos responsáveis, pondo em causa o contrato social.

Por outro lado, destrói a confiança comunicacional, a crença de que se comunica de forma aberta e sincera, e a predisposição para acreditar no que nos é transmitido. Afinal, quem diz a verdade? Por último, atinge a confiança na competência. Põe-se em dúvida a capacidade de os governantes assumirem as suas responsabilidades, cumprirem os compromissos e defenderem os interesses da colectividade.

A falta de confiança, que é o cimento da vida em sociedade, leva à quebra da legitimidade moral. As pessoas passam a acreditar que quem está no poder não tem legitimidade moral para o exercer porque não está a cumprir o seu papel, não diz a verdade e é incompetente. Por isso, também não está motivado a seguir a sua liderança nem a aceitar a sua autoridade.

Quando se perde a confiança e deixa de se reconhecer legitimidade moral, às instituições e aos seus actores, destrói-se a coesão social. Abre-se caminho à fractura da sociedade em dois campos opostos: eles e nós, a elite e o povo, a minoria corrupta e o povo puro. Esta dicotomia visa eliminar a elite representativa e devolver o poder ao povo, enquanto “vontade colectiva”. É nesta realidade abstracta que a liberdade individual se vai anular, até que uma liderança carismática fale em nome do povo e elimine qualquer representação integradora da pluralidade social.

Está aberta a porta aos populismos. Não nos devemos, pois, surpreender com o que é óbvio: o que está a acontecer é maná para os movimentos radicais. Basta esperar pelas próximas sondagens.

Os casos das últimas semanas deixam graves cicatrizes no corpo social. Destroem a coesão, polarizam a sociedade e deterioram as instituições. É urgente que a democracia representativa faça uma reflexão séria, imponha a primazia da ética, reforme os mecanismos de representatividade social e se integre na nova sociedade em rede. Se não conseguir manter a confiança, a legitimidade e a coesão social, arrisca-se a morrer às suas próprias mãos.