A personalidade do presidente russo tem sido objeto de numerosas investigações de académicos, de jornalistas e dos serviços de informação ocidentais, para inferir tendências de comportamento e desenhar o seu perfil psicológico. O objetivo é compreender a lógica das suas decisões políticas e torná-las mais previsíveis. Este conhecimento é importante na condução das relações diplomáticas, nos processos de negociação e nas tomadas de decisão, sobretudo em contextos de crise. Quais as verdadeiras motivações do presidente russo? Como toma as decisões? As suas ameaças devem ser levadas a sério? Pode-se confiar nas garantias que oferece? As suas ambições expansionistas são a expressão duma personalidade narcísica?

As respostas têm sido tão diversas quanto contraditórias. Qual é a verdadeira identidade de Putin, que aparece na propaganda oficial a pilotar um jacto militar, a banhar-se num lago gelado, a observar aves, a praticar judo, a montar a cavalo em tronco nu, a mergulhar no Mar Negro, a dar aulas a crianças, a cantar numa discoteca… Estas mensagens dirigem-se a todos os públicos mostrando facetas paradoxais da sua pessoa: Putin duro e sensível, caçador e conservacionista, formal e descontraído, próximo e distante.

A guerra na Ucrânia é a mais recente ilustração duma comunicação ambígua, aplicada às relações externas. Nos muitos comentários de jornalistas, especialistas militares, universitários, e diplomatas, abundam as tentativas para compreender os objetivos políticos e militares do presidente russo e antecipar as suas ações. Quer controlar toda a Ucrânia ou anexar apenas a área russófona? Pode fechar o abastecimento de matérias-primas à Europa? Quem é Vladimir Putin? Os dados ambíguos e desconexos postos a circular pelos porta-vozes do Kremlin, as palavras e os silêncios do presidente, as decisões contraditórias e o incumprimento de compromissos alimentam todas as hipóteses.

Esta amálgama de paradoxos, não pode deixar de ser intencional. O objetivo é responder a expectativas muito diversas e possibilitar a atribuição de múltiplas identidades. Putin desconstrói a sua identidade para levar os outros a atribuir-lhe a identidade que preferem ou que receiam.

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A longa carreira de Putin nos serviços de inteligência, as informações inconsistentes sobre a sua pessoa e a imprevisibilidade na ação sugerem que esta ambiguidade, mais que intencional, é uma tática de poder. O objetivo é transmitir mensagens paradoxais, para que não seja possível formular juízos claros e partilhados sobre a realidade. Os estímulos ambíguos permitem muitas interpretações fazendo com que todos encontrem no líder uma dimensão apelativa ou um elemento de identificação. Ao mesmo tempo, funcionam como “testes projetivos”. Cada observador interpreta-os de acordo com as suas crenças, motivações e expectativas, revelando-se a si próprio na forma como dá sentido à ambiguidade. As interpretações revelam mais acerca do intérprete, que do interpretado.

Esta tática é aplicada por Putin na comunicação interna. A ambiguidade ajuda a captar múltiplos públicos e reforça a unidade social à sua volta. É uma forma de atuação que faz todo o sentido quando é aplicada por lideranças carismáticas de tipo autoritário. Enquanto nas democracias liberais a competição entre partidos e correntes de opinião leva à especificação das mensagens e à individuação dos candidatos, na Rússia, a ausência de verdadeira competição eleitoral torna esta abordagem inadequada. O objetivo é o consenso social à volta do líder e, para isso, interessa veicular uma imagem multifacetada que agregue os diversos sectores da sociedade. A unidade no apoio à liderança é a principal fonte de poder.

Do ponto de vista externo, a tática da ambiguidade é igualmente eficaz. Torna as decisões do Kremlin menos previsíveis, aumenta os níveis de ansiedade e o medo de decisões radicais, e dificulta uma reação pronta às ameaças. A tática da ambiguidade reforça o poder de quem a controla, porque aumenta a incerteza dos oponentes e reduz a sua capacidade de resposta.

Esta tática também favorece a recolha de informação e o conhecimento das motivações e fragilidades da parte oposta. A forma como as ambiguidades são elaboradas e interpretadas funciona como uma projeção da personalidade dos intérpretes. Se analisarmos as declarações dos altos responsáveis do mundo ocidental e os comentários da comunicação social sobre a situação na Ucrânia ficamos mais informados sobre quem são, o que pensam, o que querem e o que receiam os protagonistas do Ocidente, do que sobre as verdadeiras intenções da liderança russa. As hipóteses e conjeturas feitas pelo Ocidente são usadas pela Rússia para conhecer os quadros objetivo e subjetivo em que o Ocidente se move e, com base neles, planear novas ações, aumentando a capacidade de surpreender ou de ajustar rapidamente os planos em curso. A tática da ambiguidade funciona como um laboratório em que os observados são atores numa sala de visão num só sentido: são observados mas não conhecem os observadores.

Putin não quer simplesmente escamotear a sua identidade atrás de muitas identidades possíveis. Quer ser o líder que os seus seguidores esperam e conhecer melhor tanto aqueles que o apoiam como os seus adversários, pela forma como lhe devolvem a sua identidade construída. É um jogo que ele alimenta e do qual retira vantagens políticas e militares, para reforçar a popularidade interna e a unidade em volta da sua liderança. Ao mesmo tempo, fica a conhecer as motivações dos adversários, mantém-nos confundidos e retira-lhes a iniciativa.

Quem é e o que quer Vladimir Putin? A Rússia tudo fará para que a pergunta não tenha uma resposta, mas está particularmente atenta a todas as respostas que lhe forem dadas. Este jogo é uma hábil tática de poder, que Putin e a informação russa têm conseguido executar com perícia.