A língua portuguesa é uma língua viva no tempo e no espaço. Uma língua que um povo pequeno e pobre mas aventureiro levou pelo mundo fora. E que tem em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, na Guiné, em S. Tomé, em Timor, séculos de criadores, de inventores, de inovadores, no romance, na poesia, na música, no teatro, na vida de todos os dias. É uma língua grande e plástica e plural e aberta como toda a vida que vale a pena ser vivida. Vive nas palavras dos escritores – poetas, novelistas, cronistas, historiadores – e até nas daqueles que são um bocado disso tudo ou até dos que não são nada disso.

Quando penso na língua portuguesa, viajo no tempo até aos poetas dos cancioneiros d’Amor e d’Amigo, que a usaram para bem dizer, e passo pelos que a usaram com Escárnio para Mal Dizer. Penso em Fernão Lopes, em D. Duarte, em Zurara, em João de Barros, em Diogo de Couto que com ela fizera a crónica dos nossos dias de então.

Depois demoro-me, claro, em Camões, sempre dividido entre o épico e o lírico. Entre o contador dos reis, dos heróis e do povo que fizeram Portugal, desde o princípio até pouco antes do primeiro fim de Portugal: de Afonso Henriques, o “príncipe Afonso”, que “aparelhava o Lusitano exército ditoso” em Ourique, até D. Sebastião, “bem nascida segurança da lusitana antiga liberdade; Maravilha fatal da nossa idade”, que foi morrer numa tarde de Agosto, romântica e desastradamente, numa expedição que tinha um sentido estratégico e político, mas que foi no terreno muito mal conduzida. O Camões épico, da paixão e da razão de Estado do episódio da “linda Inês” desassossegada e “posta em (derradeiro) sossego” pelos mensageiros do rei e da Morte. Ou o Camões lírico, nostálgico dos rios da Babilónia e vizinho das águas do Mondego a dar expressão ao amor.

Não haveria também língua portuguesa sem a sátira de Gil Vicente, sem o romance de Bernardino, sem a poesia de Sá de Miranda. E sem Damião de Góis, humanista por excelência. E as histórias da Expansão não seriam as mesmas sem o “burlador” Fernão Mendes Pinto. E mais europeu, D. Francisco Manuel de Melo, nascido no tempo dos Filipes, um polymetis, como Ulisses – militar, dramaturgo, cronista político, escritor –, e, como escritor, percorrendo vários géneros, da História a Teatro, e no teatro, encarnando vários estilos, do satírico ao moralista. Grande figura literária do barroco peninsular.

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De Padre Vieira, não se pode dizer mais do que Pessoa disse dele. Ou talvez possa porque o “imperador da língua portuguesa” foi sacerdote jesuíta, missionário no Brasil, conselheiro estratégico do Rei Restaurador, embaixador itinerante da Restauração, amigo das grandes figuras da Europa de Seiscentos, até da rainha Cristina da Suécia. E foi também perseguido por amor do Rei e do Reino quando, percebendo que Portugal precisava de imaginação, quis fazer voltar os cristãos novos com os seus fundos para criar uma companhia majestática portuguesa. A Inquisição não gostou e D. João IV não ousou contrariá-la. E de tudo isto, de toda esta longuíssima vida no tempo, deixou-nos, em palavras portuguesas, memórias, sermões e cartas admiráveis.

O século XVIII, o do absolutismo monárquico, clerical e magnânimo com D. João V, secular e brutal com o Marquês, piedoso e nem sequer revanchista com a “Viralhada” de D. Maria I, foi académico. Com Academias de História e Academias de Poesia, mas academias. Mais uns estrangeirados e iluminados – Ribeiro Sanches, Alexandre de Gusmão. Nunca me impressionaram académicos e arcádicos, e no fim do século, Bocage, com o seu talento marginal, veio redimi-los como uma poesia em que nos revemos melhor, pelas melhores e piores razões. Depois, a fazer a ponte para o século XIX, José Agostinho de Macedo, genial polemista e caceteiro reaccionário que fará escola com marca ideológica, embora os discípulos sejam, como quase sempre, fracos imitadores do Mestre.

No século XIX vem o romantismo com um par de combatentes liberais, Herculano e Garret. Herculano tem aquela linha de idealismo kantiano, mas Eurico o Presbítero é um bom romance histórico; como A Dama Pé-de-Cabra é um conto terrorífico, digno das melhores antologias do Gótico. Garrett, nos antípodas do estilo de vida do ascético Herculano, com uma pose de dandy literário inglês, deixou também a sua marca nessa primeira metade do século XIX – na poesia e na narrativa.

Mas o grande escritor romântico do século XIX português é Camilo Castelo Branco. Genial, pelo seu uso – e às vezes pelo seu abuso – da língua portuguesa, pela sua ressurreição de palavras e de expressões, pela construção literariamente incorrecta, pela copiosa titulação dos romances. É romântico ao extremo – nas Novelas do Minho ou no Amor de Perdição ­­– mas é também é realista, na Brazileira de Prasins. E é um admirável conhecedor e retratista do Portugal a norte do Mondego, do Portugal profundo.

E depois Eça, José Maria Eça de Queirós. No meu tempo, no tempo em que os miúdos, os adolescentes, liam livros e discutiam escritores (que é quase como dizer “no tempo em que os animais falavam”) a competição entre Camilo e Eça era um tema de conversa permanente. Quem era o melhor, de quem mais gostávamos? De Camilo ou de Eça? São sinais diferentes, pessoas diferentes, diferentes sensibilidades, línguas diferentes na mesma língua. Eça era um cosmopolita, tinha viajado pela Europa, tinha ido ao Egipto, tinha estado em Cuba. Apanhara o mundo da Europa imperial, andara pelos clubes chiques de Paris e de Londres e conhecia bem Lisboa e a sociedade portuguesa. Para o bem e para o mal retratou, Eça ridicularizou e satirizou personagens que ainda hoje por aí andam: os Pachecos, os Dâmasos, os Conselheiros Acácios, até os Artures Corvelos, como o da Capital, um romance póstumo, injustamente marginalizado. Por vezes, com alguma dificuldade, ainda apanhamos um Jacinto.

O século XX faz-se da extraordinária geração do Orfeu e, antes e acima de todos, Fernando Pessoa. Como é que, tendo morrido tão novo, escreveu com genialidade sobre coisas tão diferentes. Ao dar-nos um retrato de Portugal e dos heróis da História de Portugal na Mensagem deixou-nos um novo Portugal, e na poesia completa, em nome próprio ou desdobrado em heterónimos, consegue quase sempre surpreender-nos e esmagar-nos.

Camilo e Eça apanharam os indivíduos, as pessoas, os portugueses. Pessoa e Camões perceberam e ergueram de novo o conjunto orgânico de que se faz Portugal, o povo, a nação portuguesa, na matéria e no espírito.

E há na geração do Orfeu outros geniais, como Almada, o grande “ilustrador”, como gostava de se definir.

O século XX tem depois uma geração de escritores que trabalharam na língua a ressurreição e o registo dos vocábulos portugueses: Aquilino é um Camilo na província, com a tradição do campo; Ferreira de Castro, o neo-realista; Tomaz de Figueiredo, um Aquilino monárquico, católico e de direita; Joaquim Paço d’Arcos, que apanhou muito bem a sociedade de Lisboa; Agustina, que fez isso para o Porto e para o Norte; e Vitorino Nemésio com Mau Tempo no Canal, um grande romance português. E os poetas O’Neil, Ruy Bello, Sophia de Mello Breyner; e os contemporâneos que, confesso, não conheço tão bem, Herberto Helder, na poesia, Lobo Antunes, no romance e o Saramago do Ensaio Sobre a Cegueira e do Ano da Morte de Ricardo Reis.

E o Brasil, que é todo um outro infindável continente nesta nossa mesma língua e que, entre mortos e vivos, tem muitos dos maiores astros da Língua Portuguesa: desde Machado de Assis e Euclides da Cunha (Os Sertões é uma narrativa épica única, melhor que o Vargas Llosa de La Guerra del Fin del Mundo), José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Adonias Filho, João Guimarães Rosa, Eurico Veríssimo, Josué Montello, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar , Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Nélida Piñon e os poetas da música, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Caetano Veloso…

E Angola com os seus criadores desde o “tempo colonial” aos dias de hoje: Castro Soromenho, Maria Archer, Tomás Vieira da Cruz, Manuel Rui, Pepetela, João Melo, José Eduardo Agualusa, Ondjaki, Rui Duarte de Carvalho, Sousa Jamba, tantos mundos, tanta gente. E Moçambique com José Craveirinha, Mia Couto, Nelson Saúte.

Ou as ilhas: Baltazar Lopes, Germano de Almeida, Manuel Lopes, Jorge Barbosa, Corsino Fortes, Onésimo Silveira, Alda do Espírito Santo, Francisco José Tenreiro.

E todo este mundo de língua portuguesa, uma língua esforçada, densa, aventurosa, inventiva, criativa. Uma língua capaz de se adaptar à modernidade sem complexos e que é também e sobretudo um grande tesouro da identidade e das nações e dos povos que a falam e escrevem.