Apesar de nominalmente interessados no que se passa, muito poucos portugueses frequentam com regularidade as cerimónias informativas. O assunto tem vindo a preocupar as autoridades. Para o Verão, em que os dias longos não convidam ao recolhimento das vésperas, os telejornais vesperais recorrem aos métodos mais robustos de catequese. Não se trata, naturalmente, de trair a sua natureza profunda; não há grande diferença de doutrina entre o telejornal de Verão e o de Inverno. Trata-se de no Verão tornar a doutrina completamente aparente, e assim poder melhor resgatar do desamparo cognitivo a massa decrescente dos fiéis.

O filósofo tinha observado que a diferença principal entre história e poesia é que a primeira descreve aquilo que se passou; e a segunda aquilo que pode muito bem passar-se. Concluiu que por isso a poesia é mais filosófica e mais séria que a história. A tese ilustra perfeitamente a natureza filosófica do telejornal, e desde logo dos telejornais de Verão: tudo neles poderia muito bem ter-se passado. Ajuda que quem os apresenta seja por regra autor de ficção publicada. A sua credibilidade na matéria permite-lhes comentar o significado daquilo que pode acontecer, e relembrar como o mundo é triste e reprovável; e, visto que nada ainda se passou connosco, que existe uma ameaça: qualquer coisa pode acontecer. O medo de ainda não nos ter acontecido uma coisa é o ingrediente mais seguro do telejornal, como foi sempre o da poesia.

No Verão a liturgia organiza-se em dois segmentos principais: por esta ordem, o segmento-tragédia e o segmento alimentar. No segmento-tragédia são ilustrados fenómenos naturais e opiniões que poderão ter ocorrido em diversos destinos turísticos. O género é a teodiceia: como é possível que haja tanto mal no mundo? As causas metafísicas alegadas são: a cobiça de alguns, a cegueira de todos, e as alterações climáticas. Estas várias causas são declinadas a cada caso pelos ficcionistas, como apostos jaculatórios às tragédias. Com conhecimento explicam que tudo se possa vir a passar, e que tudo já se tenha passado; que nada de novo haja sob o sol, e que a terra esteja a aquecer.

No segmento alimentar a situação é diferente. Um casal de etnólogos percorre por regra paragens remotas. Se num momento anterior não se tivesse procedido à sua localização suspeitaríamos de que poderia haver por ali ranchos de nativos, ou de acordéons. O diálogo franco e malicioso fez maravilhas, e dispô-los a dar acesso aos seus preparados alimentares secretos. Durante os preparos os nativos declaram que estão a mexer um tacho sempre que é esse o caso; os etnólogos observam-nos perfunctoriamente. O método resulta. Os resultados parecem-se uns com os outros: carnes que foram cor-de-laranja e, a emergir do fumo delicioso, bordas de alguidar e sopas no mel. Durante a ingestão participativa os etnólogos conversam entre si com embirração humorosa e combinada. Tudo aquilo se poderia ter passado.

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