Começo por informar que nunca uma mulher me fez a mala. Faço-a – alguns observadores sem princípios sugerem que a desfaço – sozinho. E o resultado roça a perfeição. Quer dizer, a roupa é amarrotada logo de início, esqueço-me de levar coisas que se revelarão necessárias, e levo coisas de que não precisarei. Nos dias melhores, ainda incluo involuntariamente um par de peúgas usadas que se esconderam no forro após a viagem anterior. Mas o fundamental é que a mala não carrega um grama de machismo: a única intervenção feminina na minha mala resume-se a uma gargalhada, avaliação que não pedi nem agradeço.
Talvez isto venha a propósito das declarações do ministro da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, que na terça-feira, de partida para Aveiro, onde iria reunir com os autarcas da região para discutir os incêndios e os problemas imediatos das pessoas afectadas, resolveu partilhar com o público que a mulher lhe fizera uma mala para três dias. A confissão, ou o deslize, não passou despercebida a Joana Mortágua, deputada e gémea na aparência e na argúcia da actual chefe do Bloco de Esquerda, com quem partilha uma avó aflita.
Mal descortinou a frase do ministro, Joana correu a denunciá-la no Twitter: “Este senhor é ministro mas é a mulher quem lhe faz a mala. Incompetência ou machismo, o que acham?” Do que vi nos comentários, a vasta maioria acha que a Joana é parva. É natural. Os comentários costumam ser obra de gente bruta, incapaz da sofisticação que permite detectar uma deformação de carácter no meio de uma conversa aparentemente inócua. A Joana, sofisticadíssima, detectou num ápice o machismo do governante: se a mulher lhe faz a mala, é lícito deduzir que também se ocupa de todas as tarefas domésticas, sendo portanto uma mártir às mãos do misógino marido, que provavelmente a espanca com regularidade. Faltou pouco para a Joana comparar a situação desesperada da mulher de Castro Almeida com a das mulheres violadas e assassinadas em nome da “honra” na “Palestina”. Felizmente, a Joana é uma alma moderada.
A maçada é que a internet está cheiinha de imoderados, que se puseram a atacar a Joana por esta, cito, se preocupar com insignificâncias (!) e desprezar a circunstância de, naquele momento, metade do país estar a arder. E então? Os burgessos ignoram que, a menos que contemos os indivíduos que se identificam como árvores, os fogos florestais são um tema insusceptível de encaixar no brilhante quadro mental da Joana e dos demais intelectuais da sua agremiação. No máximo, permitem umas considerações forçadas, e cansadas, em volta das alterações climáticas. Aliás, o interesse do BE pelas chamas e pelas consequências das chamas ficou sedimentado na sentença de Catarina Martins em 19 de Junho de 2017, escassas horas depois da tragédia de Pedrógão Grande: “Que venha a chuva. Bom dia”. É o interesse que um vegetariano experimenta ao ser informado da próxima feira de enchidos em Vinhais.
As labaredas que a Joana aprecia são de estirpe diferente, e deflagram sempre que há possibilidade de dividir a sociedade em grupos de opressores e oprimidos, de culpados e vítimas, de demónios e santos. Conforme a própria explicou após se ver insultada, “A conversa da minha mulher faz-me a mala é de uma enorme falta de noção num país onde o machismo mata mais do que qualquer outro crime.” É assim mesmo, Joana. É urgente deixar claro que, além de revelarem uma relação conjugal desequilibrada, preocupante e a reclamar intervenção da APAV, as palavras de Castro Almeida constituem um evidente incentivo ao homicídio de esposas, companheiras e namoradas. O homem, com minúscula e com maiúscula, devia estar preso.
Em simultâneo, acredito que só a restrição de caracteres do Twitter impediu a Joana de ser mais explícita quando refere que “o machismo mata mais do que qualquer outro crime”. Junto com o racismo, convém acrescentar. E a xenofobia. E a homofobia. E a transfobia. E o colonialismo. E o sionismo. E o alojamento local. E o capitalismo em geral. Por mim, não ficaria espantado que Castro Almeida, português, caucasiano, heterossexual e machista, acumulasse igualmente as perversões mencionadas. Quanto aos incêndios, criminosos ou fortuitos, apenas matam bombeiros e populares não devidamente catalogados na matriz do BE, pelo que não são comparáveis às desgraças a sério. Nem particularmente interessantes. A Joana foi justa e digna em reagir com sarcasmo aos ignorantes das “redes sociais”.
Felizmente, os ignorantes não são tudo. Importa evitar o pessimismo e perceber que a Joana tem um público. Embora em minoria – e o que é minoria é bom –, nas “redes sociais” e fora das “redes sociais” existe em Portugal gente que dá razão à Joana e “partilha” com e sem aspas as meditações dela sobre esta e outras matérias. É gente desperta para as Grandes Questões (de 0,000001% da humanidade), atenta às injustiças (reais ou imaginárias) e pronta a denunciá-las (a fim de adquirir e passear virtude). É gente que vota no BE, ou no Livre, no PAN, no PCP, crescentemente no PS ou ocasionalmente em certas “direitas”. É gente que abraça causas e, excepto se estiverem a arder, pinheiros ou combatentes do Hezbollah. É gente livre de pensar o que lhes dizem e indignada por alguns poderem dizer o que pensam. É, em suma, gente que não precisa de ajuda para fazer a mala, até porque as respectivas malas não fecham bem.