Desde que o li, nunca mais me esqueci deste excerto:
“Acendi um cigarro e o homem falou comigo.
– Não te importas de me dar um, irmão?
Amaldiçoei o olfato do tipo. Restavam-me muito poucos e quem sabe se encontraria alguma coisa para fumar quando se acabassem estes. Mas não se pode negar um cigarro. Eu também conhecia a prisão e sei a vontade de fumar que dá. Além disso, eram as suas últimas horas.
– Toma.
Passei-lhe um aceso pela ranhura inferior da porta.
– Obrigado, irmão.
– Não me chames irmão.
– Todos somos irmãos. Caim e Abel também eram irmãos.
– Cala-te.
O prisioneiro não tornou a falar, e melhor assim.”
Apareceu-me no Encontro de amor num país em guerra, um minúsculo livro de contos, do saudoso Luís Sepúlveda. Lembra-me um pouco a natureza da guerra, sobre a qual aliás li e ouvi, mas nunca conheci. Tem pendente um sentimento que cobre a humanidade das pessoas como se fosse um manto, ou uma mortalha, que apenas sobressai quando a pessoa insiste em agir como uma pessoa: chamar pela mãe, jogar futebol, fumar um cigarro.
Tanto mais espessa a mortalha, quanto espesso o conflito. E, no Levante, já nem se diria espesso, mas sólido como cimento, como se não fossem homens e mulheres, mas apenas israelitas e palestinianos.
É aquilo a que se chama Nó Górdio, o nó grego e mitológico impossível de desatar; até que o não menos grego e mitológico Alexandre, o Grande, cortou à força da sua espada. No fundo, o Nó fica muito apertado, e apenas se deslinda o mistério de como o desfazer com violência simples e eficaz.
E muito se fala de como desfazer o Nó Górdio, mas pouco de como ficou tão apertado.
Um palestiniano ou um israelita de vinte anos, por motivos diferentes, estão numa situação de mata-ou-morre com um inimigo estrangeiro, bárbaro e desumano. O palestiniano nasceu a tempo de ouvir histórias com dezenas de anos sobre os primeiros colonatos israelitas; a “Grande Catástrofe”, ou Nakba, de 1948, em que os seus avós e bisavós foram expulsos de casa (no mínimo); a mortandade que lhe sucedeu. Nasceu a tempo de ver morrer Yasser Arafat, cujos esforços em prol de uma solução de dois Estados para o conflito com Israel foram rapidamente esquecidos, depois da tomada do poder em Gaza pelos terroristas do Hamas; e as represálias dos israelitas – que já colonizavam o resto da Palestina –, que matavam centenas todos os anos. O israelita nasceu a tempo de ouvir falar sobre a prossecução da sua estirpe há 80 anos; da Guerra dos Seis Dias, em que todos os vizinhos se uniram para aniquilar o país; para ver o sistema antimísseis de Israel a salvar a sua cidade contra invectivas palestinianas. Aquele vê notícias da mortandade na Palestina, que já excedeu os 8.000, especialmente mulheres e crianças, segundo a Associated Press; este vê as mesmas notícias, que falam de 1.400 israelitas mortos, e um eco cada vez mais forte – e penetrante, no Ocidente –, que exclama: “From the River to the Sea, Palestine will be free.”
Estes homens estão imersos em história e cultura, da sua família e do seu país. É evidente que a vida os molda em forma de soldados, porque tudo lhe diz que o Outro vai voltar a atacar a sua família e o seu país – e, segundo o ecrã da televisão, vai. Como um objecto a reagir à lei da gravidade, ou como se fosse mais um ritual ou passo de dança, eles vão fazer o que tudo lhes diz que têm de fazer.
Não há guerras sem soldados, mas também não há soldados sem guerras. E, como se fosse uma receita culinária, fica evidente de onde aparecem os homens-bomba: de uma guerra, espessa e demasiado apertada. Estão apenas a tentar desfazer o Nó Górdio.
Que Alguém nos salve de nós próprios.