Ao som longínquo do Adhan, que chama os muçulmanos para a oração da tarde, escrevo estas linhas em Beirute onde cheguei ontem à noite. Depois de atravessar diversos check points devidamente patrulhados e armados, chego a esta cidade incrível, onde se vivem os contrastes sociais, políticos e religiosos mais extraordinários. Literalmente ao lado da grande Mesquita Mohammad Al-Amin, apenas separada por uma pequena grade, está a Catedral Católica Maronita, um pouco mais acima a Catedral Ortodoxa e, a uns 100 metros de distância, a Catedral Católica Latina. Apesar da tensão habitual, a que nos vamos habituando, é impressionante ver como as diferenças convivem, marcando cada uma fortemente a sua identidade. Aliás, este é um acordo deste país que tenta politicamente ir superando as diferenças religiosas – que são muito mais do que religiosas. De facto, segundo a Constituição Libanesa, o Presidente da República é sempre cristão maronita, o Primeiro Ministro sempre muçulmano sunita e o Presidente do Parlamento sempre muçulmano xiita. Os deputados que compõem o parlamento são 50% cristãos e 50% muçulmanos.
Tenho estado numa zona do Líbano que se situa a pouco mais de 20km da fronteira com a Síria. Aqui se experimenta o impressionante poder da comunicação social. Sem acesso à internet e com escasso acesso a redes de telemóvel, tudo o que aconteceu esta semana do lado de lá desta fronteira que fica apenas a 20km, parece não influenciar minimamente a vida quotidiana de quem aqui vive.
Só quando cheguei a Beirute – não porque se respirasse alguma preocupação acima do normal, mas simplesmente porque retomei o normal acesso aos meios de comunicação – me apercebi do que realmente aconteceu e como isso pode estar a influenciar as relações internacionais deste mundo, que se revela cada vez mais um barril de pólvora pronto a explodir. Claro, Beirute vive habituada a militares armados até aos dentes espalhados pelas ruas, com cancelas e check points a cada esquina. Por isso, nada de novo deste lado do Mediterrânio.
Quando digo que o que aconteceu esta semana parece não influenciar os hábitos quotidianos das pessoas do lado de cá da fronteira com a Síria, não estou a afirmar que não afeta a vida delas. É óbvio que atinge, no mais profundo, o coração do milhão e meio de refugiados sírios que aqui vivem e dos quatro milhões e meio de libaneses que veem esta zona ainda mais perigosamente inflamada. No entanto, lastimosamente, nota-se que as pessoas se acostumaram a viver numa zona de conflitos brutais e intermináveis. Habituaram-se ao sofrimento. Sim, muito sofrimento. No nosso canto ocidental da Europa, não imaginamos como a morte violenta e injusta faz parte da vida quotidiana nesta parte do mundo.
Nestes dias, percorri parte da estrada de Damasco. Não pude deixar de me recordar de Saulo de Tarso e de como, neste caminho, ele se converteu: “Estava a caminho e já próximo de Damasco, quando se viu subitamente envolvido por uma intensa luz vinda do Céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: «Saulo, Saulo, porque me persegues?» Ele perguntou: «Quem és Tu, Senhor?» Respondeu: «Eu sou Jesus, a quem tu persegues»” (Act 9,3-5). Aquele que perseguia os cristãos, acabou por se tornar o seguidor mais fervoroso de Jesus Cristo. Claro que todos lemos estas linhas de modo diferente. Desde a incredulidade à literalidade absolutas, passando por uma leitura mais simbólica. Mas, de facto, observamos historicamente que algo de muito profundo se passou naquela estrada, de tal modo que operou uma transformação copérnica na vida deste homem. Saulo de Tarso transformou-se no apóstolo S. Paulo.
Porque será – rezava eu – que, percorrendo este mesmo caminho, não me converto? Continuo igual ao que era. Podia invocar que Saulo experimentou uma graça especial e eu não. Que a ele foi-lhe dado ter uma visão e ouvir uma voz que o fez cair por terra a ponto de abalar os alicerces da sua vida e pôr-se totalmente em questão. E a mim não. Mas, de facto, não é verdade.
As famílias sírias que, mesmo à beira da estrada de Damasco, me convidavam a tomar chá nas tendas do campo de refugiados, descalços e sentados no chão, e que me recebiam com uma dignidade ímpar: não são elas uma voz a gritar-me aos ouvidos? Não é esta precisamente a mesma voz que Saulo ouviu? As crianças destas famílias que me receberam na escola gerida pelo Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS), tentando dizer no seu melhor inglês “welcome”: não são elas uma visão explosiva de Cristo que me convida a cair por terra como Saulo de Tarso? Haverá outra visão? Estas crianças, muitas delas órfãs de guerra, pareciam iguais a quaisquer outras crianças do mundo. Vão à escola todos os dias, têm sonhos grandes, jogam à bola, brincam e brigam no recreio como qualquer criança em qualquer canto da terra. E no entanto, apenas vislumbramos o que pode ser a espessura do seu sofrimento quando conversamos com as psicólogas do JRS que nos falam por alto das histórias que acompanham.
Entramos na Semana Maior. Este é o tempo em que se celebra a paixão, morte e ressurreição de Cristo. Podemos sempre ficar na meditação nostálgica de uma condenação injusta de há dois mil anos. É uma atitude piedosa e segura. Mas é certamente a recusa de viver o evangelho que nos desinstala e nos recorda que a paixão de Cristo está tão presente hoje como há dois mil anos na pessoa de Jesus de Nazaré.
Somos todos demasiadamente impotentes para alterar o curso dos acontecimentos mundiais. Não temos possibilidade de interferir no negocio de armamento ou na política internacional ao mais alto nível. Nenhum de nós pode acabar com a guerra, com a injustiça ou com a fome que graça a grande maioria da humanidade. Mais, honestamente poderemos até afirmar que não temos culpa do que se passa no mundo.
Mas entre a culpa e a responsabilidade está a liberdade de cada um de nós. Sem querer ser naïf, há que reconhecer que, ainda que não tenha culpa, ninguém me exime da responsabilidade de não me fazer cego à injustiça à minha volta e denunciá-la. Não estou isento de me questionar como uso os meus bens materiais ou o meu tempo, se partilho com quem precisa ou se acumulo para mim. E não basta dar do supérfluo, pois “se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: «Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará?” (Tg 2,15-16). Sempre me fez confusão aquelas orações piedosas que pedem a Jesus para saciar os famintos. Como poderá Ele saciá-los se não através de nós? A omissão é muitas vezes mais grave do que a ação.
A Paixão de Cristo, que celebramos esta semana, acaba na Ressurreição. A dor e a morte são, afinal, a porta para a Vida. São sempre penúltimas. Não porque devam ser, mas simplesmente porque a vida teima em oferecer-nos, juntamente com muitas alegrias, o sofrimento. Como diz o Papa Francisco, a realidade é mais forte do que a ideia. Podemos ficar no idealismo de uma vida sem dor. Mas se queremos viver a sério, resta-nos abraçar a vida como ela é e, a partir dessa realidade, ir vivendo desde já a entrega que nos vai abrindo à verdadeira Vida.
Não, claro que não percorri ainda o caminho de Saulo de Tarso. A estrada de Damasco paulina é interior, mais do que exterior. E essa ninguém pode percorrê-la por mim. Que ao menos a estrada dos acontecimentos exteriores nos torne mais sensíveis a ir transformando a geografia interior e nos dê a força de ir transformando as mortes à nossa volta em vida com sentido.
Sacerdote jesuíta
PS. Escrevo estas linhas no Domingo de Ramos. Surgem notícias de bombas em igrejas maronitas no Egito. Aqui ainda não se sabe da extensão nem da intensidade destes atentados. É certamente uma “preparação” para a visita do Papa àquele país. Conhecendo Francisco, podemos imaginar como já estará a insistir com a segurança para manter a visita a todo o custo.