Ó júbilo, ó glória. A partir de 1 de Setembro, as certidões de óbito vão passar a ser vitalícias. Enfim, vitalícias talvez não seja o termo mais feliz; vão passar a ser válidas para sempre, anunciou, esta semana, um orgulhoso Ministério da Justiça.
Sim, em Portugal, até hoje – na verdade, até quinta-feira próxima – ainda é preciso renovar a certidão de óbito digital de seis em seis meses. E pagar 10 euros de cada vez. Uma espécie de renovação da licença para se estar finado. Uma actualização do B.I. de defunto. Uma carta de condução que atesta que as nossas capacidades para manter o pernil esticado se mantêm intactas. A constatação científica de que se está mesmo morto e bem morto, não se ressuscitou, não se virou zombie, nem foi para o Havai com o Elvis só para não pagar IMI, IRS, TSU, taxa municipal de direitos de passagem, contribuição audiovisual e afins.
Sim, já todos sabíamos que vivíamos num país onde era preciso pagar só por estar vivo, mas, convenhamos, foi um choque saber que também era preciso pagar por estar morto. Suspeito, agora que penso nisto, que tenha muitos mortos ilegais na família. Não por malfeitoria, quero dizer, mas desconhecimento da lei. Avós mortos clandestinos, tios mortos ilegalizados, bisavós e trisavós em crónica fuga ao fisco da tumba. Uma dinastia de marginais que não sei se envergonhe, se orgulhe, os descendentes que viveram para assistir a este dia histórico: o dia em que o Governo português percebeu que a morte é para sempre. Curva-te de novo, ó mundo, diante da sabedoria lusitana.
Não apouquemos a dignidade do momento; é um enorme avanço civilizacional. Foi preciso coragem para tomar esta decisão num país de maioria católica e onde se deram as aparições de Fátima. Um país onde os governos anteriores, no fundo, acreditavam sempre na hipótese de uma coisa poder voltar à vida – ou não tivessem acompanhado toda a carreira de Pedro Santana Lopes. Um país marcado e definido pelo mito do sebastianismo, eternamente à espera do regresso do rei, cuja morte se recusa a aceitar, mesmo que já lá vão 445 anos, fez este 4 de Agosto, desde que foi avistado a última vez, brandindo a espada de Afonso Henriques sobre as cabeças dos soldados inimigos e uma nuvem de pó, nas areias de Alcácer Quibir.
Não. Isto não era só chegar aqui e morrer – isso é que era bom. Ainda por cima, no estrangeiro? É preciso equivalência, acordos, selos, aprender a morrer em português. Se não pagou os dez paus, igualmente exigidos – e estes casos não foram revogados – para renovar licenças de maternidade, perfilhação ou nascimento (sim, de acordo com o génio burocrata português, uma pessoa pode afinal deixar de ter nascido, seis meses depois de vindo ao mundo, não importa quantas fraldas usadas se anexem como prova) – a pessoa pode não estar morta, mas somente desaparecida. Ou mesmo, como diria a pessoa a desempenhar anteriormente a personagem de ministro da Cultura, não estar sequer desaparecida; simplesmente não sabermos onde está.
Tudo isto tem, como vemos, camadas de sentido que se infiltram na mais profunda identidade portuguesa. Todavia, há que reconhecer que não era prático: uma pessoa falecida e ainda tinha de se deslocar à loja do cidadão para tirar um papel? Deixar à parte da herança uns trocos para as renovações – ou, porventura, assentar em tempo útil com o banco um débito directo em conta perpétuo? Verdade que podia tratar de tudo online, mas, caramba, é chato: um indivíduo, quando morre, deixa de acompanhar esses desenvolvimentos tecnológicos. É verdade que, em muito serviço público, se passa tempo suficiente na fila de espera para bater a bota, mas e depois quem é que assina o papel? Quem é que marca o pin do cartão?
Pronto, dirá, sempre servem de alguma coisa os governos PS, mesmo se ainda tinham em vigor burocracias e taxinhas destas, mais de 20 anos depois do primeiro Simplex. Escaparam entre as gotas da chuva! Pois, mas não. Este caso diz mais do país e do governo que temos do que parece: o fim da patética licença de morte temporária só é agora possível porque um pequeno partido da oposição levantou o caso e apresentou a proposta – apenas para ser chumbada pelo mesmo PS que, meses depois, a anuncia. Porque até para morrer se consegue ser pequenino.
Foi o deputado Carlos Guimarães Pinto (o mesmo a quem devemos o fim da obrigatoriedade do bidé e do selo do seguro pespegado no vidro do carro) que apresentou a proposta à Assembleia em Maio passado, então rejeitada pelo PS e pelo PCP, claro, que se recusa a estar morto não apenas seis meses, mas 50 anos depois, e que contou ainda com as embaraçosas abstenções de PSD, PAN, Bloco, Livre e de dois quase-revolucionários do PS.
Três meses depois, e sabe-se lá graças a que epifania, o governo muda de ideias sem pedir licença nem desculpa a ninguém. Porque, meus amigos, caso ainda não tenham percebido, isto é assim: para Costa e a sua turma, a morte só é absoluta até ao PS o declarar.