Não é a primeira vez que me apanho a pensar que devo ser um dos poucos portugueses que não tem nacionalidade dupla – ou mesmo múltipla. Acontece-me frequentemente quando leio o que os meus compatriotas escrevem, sobretudo sobre os Estados Unidos. Apaixonam-se e tomam partido, como se fossem eleitores locais e, simultaneamente, guardiões da moralidade universal. Não me refiro, é claro às pessoas que escrevem profissionalmente sobre a matéria, das quais se pode discordar, mas que sabem daquilo que falam – e, sobretudo, falam com preocupação de objectividade. Refiro-me a colunistas de vária pinta que, como eu aqui, abordam temas mais ou menos variados de semana a semana.
Nos últimos tempos a dupla nacionalidade luso-britânica tem andado particularmente na moda, assumindo o mais das vezes a forma de uma detestação de Boris Johnson (de quem eu, por acaso, gosto) que se declina a partir das várias modalidades do desprezo: um palhaço, um ignorante, um aldrabão, etc. Que os próprios ingleses usem esses pouco simpáticos epítetos (que, de resto, me parecem grandemente injustos), eu percebo. Apesar de tudo, foram eles que votaram nele de forma maciça e podem-se sentir desiludidos. Agora que, aqui neste nosso cantinho, a mesma passionalidade se manifeste, como se andássemos todos a votar no Reino Unido, parece-me muito estranho. Nos meus momentos mais pessimistas, atribuo a coisa a um complexo de inferioridade nacional: é como se Portugal não merecesse atenção e fosse preciso transportarmo-nos em espírito para outras cidadanias mais conformes às nossas elevadas ambições. A mim, parece-me parolice, mas não desenvolvo, porque não quero ofender ninguém.
E, no entanto, Portugal é muito interessante. É preciso que alguém o diga alto e bom som, até que a voz lhe doa. Estou aqui para isso. Por estes dias, com efeito, tenho-me lembrado de um episódio fascinante, que já teve lugar há uns anos, que, na sua singeleza, sempre me pareceu digno de alguma atenção. Lembrar-se-ão sem dúvida dele. Num concerto dos “Xutos e Pontapés”, em Julho de 2018, o grupo foi acompanhado, em “A Minha Casinha”, por um belo naipe de artistas convidados: Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Ferro Rodrigues, Fernando Medina e Catarina Martins. A festa foi linda, pá. E tão mais linda quanto a versão dos “Xutos” omitia algumas das melhores passagens da versão original, cantada por Milú no filme de 1943 de Arthur Duarte, “O Costa do Castelo”. Mas “a minha alegre casinha / tão modesta quanto eu” não pode ser verdadeiramente entendida, mesmo em segundo ou terceiro ou quarto ou quinto grau, sem a referência ao tecto “baixinho”, à “casa pequenina” e, sobretudo, e muito sobretudo, ao doce ensinamento segundo o qual “quase sempre o lar dos pobres / tem mais alegria”. João Silva Tavares, o autor dos versos, certamente que assim o entendia.
À sua maneira, também o entendem assim os artistas convidados que tanto abrilhantaram aquela noite musical. Não o podem dizer, é claro, mas os seus gestos não enganam. O “lar dos pobres” é para eles o lugar de excelência da “alegria”. Da alegria da casinha da Milú ou da do “Pátio das Cantigas”, que Francisco Ribeiro (o “Ribeirinho”) realizara no ano anterior a “O Costa do Castelo”. Da ditadura de Salazar às várias modalidades de putativo socialismo (chamemos-lhe assim, para simplificar) que se oferecem ao “bom povo português” (como o General Spínola apreciava começar, com voz tremelicante, os seus discursos), há coisas que não mudam. O povo é composto por crianças que têm de ser convenientemente educadas. E essa educação, se elas se portarem bem, se não fizerem asneiras, deve ser uma educação plena de afectos. Na nossa “alegre casinha”, ou no “pátio das cantigas”, modestos, a não ser quando o Estado nos diz que não convém ser – praticamente só no futebol -, devemos e podemos ser felizes. Nem no Butão, que está no topo mundial dos índices de “felicidade nacional bruta (FNB)”, há gente como nós.
Marcelo, o cantor (também já fez um dueto televisivo com Pedro Abrunhosa), dá o exemplo. Aliás, dá o exemplo nos dois sentidos. Trata-nos como crianças constantemente agraciadas com os seus afectos. Quer-nos ver felizes. E ele próprio se comporta como uma criança (se bem que sobredotada) para vermos como se deve ser. Alegra-se efusivamente, por exemplo, quando o recebem em Copacabana com abraços e beijinhos e não vê inconveniente de maior em que o Presidente do Brasil desmarque o almoço que com ele tinha combinado por ele se ir entreter com o seu adversário presidencial, Lula da Silva. Se alguma coisa, foi óptimo: “Aquilo que podia ser um amargo de boca foi uma coisa muito doce”. Aparentemente, receber um pontapé pode ser um pináculo de doçura. Isto já não é um mero habitante do Butão. É um super-Butão em pessoa, e com picos que vão muito acima dos 7.000 metros do original, exibindo uma FNB galáctica. E as “coisas muito doces” acontecem-lhe constantemente, onde quer que esteja e o que quer que esteja a fazer: a mergulhar na praia ou a comentar um jogo de futebol, como acontece amiúde. É uma pena que o remake que foi recentemente feito do “Pátio das Cantigas” não tenha incorporado uma personagem inspirada em Marcelo. Imaginem o achado que seria. Uma pessoa põe-se logo a sonhar com as traquinices que ele faria com o Evaristo da drogaria, tudo acabando numa selfie. Ah, que povo tão alegre, sem quase nunca deixar de ser (e de querer ser) modesto e humilde!
É claro que às vezes é necessário prodigalizar-lhe reprimendas e açoites. Dizer-lhe para não comer bacalhau à Brás nas folgazonas jornadas de veraneio, não vá a festa da “casa pequenina” acabar em vómitos e em atentado à sobrevivência do SNS. Ou então zelar para que as crianças (isto é, todos nós) aprendam devidamente aquilo que fazem os americanos, que, sob este aspecto (apenas sob este aspecto, note-se), estão muito evoluídos. Quer dizer: que aprendam a maneira correcta de falar e não digam as palavras feias de que a história multissecular da humanidade está cheia. O bom povo não deve viver na ignorância. Se é verdade que o saber não ocupa lugar, também o é que quem não quer saber não tem entre nós qualquer lugar. E o único saber que conta, em qualquer domínio que seja, é aquele que o Estado dita: sem ele, o lar dos pobres não conhece alegria. O Ministério Público de Famalicão mostrou-o recentemente a quem, aparentemente, deseja ser infeliz – e, se calhar, que horror!, rico. Mas no pátio das cantigas – que é também, à sua maneira, uma Praça da Canção – ninguém deve querer ser infeliz ou rico. Felizes e pobres é que sim. Temos que trabalhar todos, como se um só fossemos, para que a nossa FNB continue himalaica.
O que implica, claro está, que não percamos tempo com as coisas tristes da política. Na nossa “alegre casinha”, tão bem cantada pelos ilustres artistas convidados, essa baixeza não entra. Por exemplo, há pouco tempo, um ministro, Pedro Nuno Santos, e o primeiro-ministro, António Costa, discordaram ferozmente sobre a vexata quaestio da localização do novo aeroporto de Lisboa, com despachos, revogação de despachos, entrevistas televisivas, etc. Num outro país, com menos ambição à primazia na FNB, teria havido sangue. No pátio das cantigas, não. O ministro, com os olhos postos nos nossos Himalaias colectivos, e sem pensar por um só instante em si mesmo, foi, como notou o primeiro-ministro, modesto, seguindo o conselho da canção da Milú e dos “Xutos”. E, como na versão original, a de Milú, abriu “a porta em tom discreto” e pediu ao “tecto tão baixinho”: «Senhor tecto, / por favor deixe-me entrar»”. Para reforçar a ideia de que estas baixezas da política não são connosco, António Costa decretou que aquele efémero acontecimento se tinha volatilizado para todo o sempre e que qualquer nova conversa sobre a matéria seria espúria e nojenta de póstuma. Decretou e decretou com fatal sucesso. A FNB é incompatível com certos falatórios. Se até os ministros, eles que têm poder, percebem, quem somos nós para não perceber?
Por estas e por outras é que eu não vejo que certos espíritos de pena ágil e dada ao aferro obstinado, precisem de sair mentalmente da pátria e desenvolver passionalidades extravagantes no que respeita aos eleitos de outras plagas mais fleumáticas. Portugal é tão intrinsecamente fascinante que a sorte grande que nos saiu de vivermos neste “primeiro andar / a contar vindo do céu” poderia perfeitamente concentrar a nossa passionalidade. Com exaltação, maravilhamento, enlevo e doçura – e até, não fosse a danada da preocupação com a FNB, irritação e desespero.