Em 2011 um grupo de investigadores no Reino Unido lançou o “Fluephone”, um projeto piloto baseado numa aplicação que permitia o registo de sintomas gripais ao mesmo tempo que monitorizava o fluxo da transmissão do vírus, com base na geolocalização dos telemóveis de quem tinha declarado ter gripe.

Embora o projeto não tivesse tido a adesão esperada, serviu para demonstrar o impacto que o uso da tecnologia pode ter no combate de uma pandemia, e desbravou caminho para as soluções tecnológicas atualmente usadas no combate e rastreio do Covid-19.

Na Coreia do Sul, por exemplo, qualquer pessoa que tenha instalado a aplicação “Corona 100m” no seu telemóvel, conseguirá saber a nacionalidade, género, idade, e os últimos locais visitados por quem tenha testado positivo para o Covid-19, bem como a que distância se encontra de um portador do vírus.

São vários os países que têm procurado seguir esta tendência de retirar a característica de invisibilidade ao vírus, recorrendo à geolocalização dos telemóveis de quem é portador do Covid-19 e usando esses dados para analisar, em tempo real, as tendências e os padrões de movimento dos seus cidadãos ou até mesmo, assegurar que estes não violam a quarentena.

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Embora a ideia de geolocalizar os portadores do vírus pareça ser uma proposta tentadora para conseguir visualizar a verdadeira dimensão daquilo que nos ameaça, esta monitorização é feita em prejuízo evidente da privacidade individual, espartilhando o nosso espaço em benefício de um lugar melhor para todos.

Não é a primeira vez que nos é exigida esta entrega.  Nos anos que se seguiram aos atentados de 11 de setembro, hipotecámos a nossa privacidade em troca de um mundo mais seguro aceitando, por exemplo, que dados referentes às nossas comunicações fossem mantidos quase indefinidamente acedidos e transferidos de forma ilimitada.  Partimos da premissa errada de que quem nada tivesse a esconder de nada estaria a prescindir até que, em 2013, o mundo percebeu pelas revelações de Edward Snowden, que o espaço confiado que seria utilizado em benefício de todos estava, contudo, ocupado pelo pior dos interesses.

Agora, numa altura em que voltámos a erguer fronteiras, fechámos aeroportos, ruas, vilas e cidades e em que drones patrulham as marginais com altifalantes relembrando os mais teimosos da importância de ficar em casa, será ingénuo pensar que Portugal não irá implementar medidas mais intrusivas. Devemos, contudo, ter presente que, iniciada esta trajetória, dificilmente regressaremos ilesos ao nosso ponto de partida.

Qualquer medida ou limitação que venha a ser imposta, mesmo que temporária, para além de criar um perigoso precedente, terá sempre o perverso efeito de aumentar o nosso nível de tolerância a medidas limitativas dos nossos direitos.

É inquestionável que esta crise sanitária impõe sacrifícios a todos, mas o verdadeiro perigo não decorre das medidas temporárias que eventualmente venham a ser impostas, mas da alteração que estas podem vir a ter na forma como pensamos e iremos encarar futuras limitações até porque, qualquer espaço da nossa privacidade que entreguemos, dificilmente nos será restituído desocupado ou isento de vícios.

Não devemos, por isso, perder de vista a transparência e a proporcionalidade e esgotar adequadamente outras formas menos intrusivas, antes de sujeitar toda uma população a um regime massivo de monitorização.

Por último, convém lembrar que o Estado tem sido o pior dos exemplos no tratamento dos nossos dados e o simples facto de a lei atualmente em vigor, ao arrepio de tudo o que é admissível, permitir, por exemplo, que os nossos dados pessoais circulem entre entidades públicas para fins diferentes daqueles para os quais foram inicialmente recolhidos, não deveria deixar ninguém indiferente.

Estas mediadas mais intrusivas, por muito temporárias que venham a ser, pouco desvendam sobre o verdadeiro impacto que podem vir a ter nas nossas vidas, nos nossos dados e na nossa privacidade.