O Dr. Paulo Portas decidiu esta semana dar parte à nação do seu enfado com a democracia. Está, segundo ele, uma “gritaria”. Com as redes sociais, toda a gente fala, e toda a gente corre atrás de “gostos”. O mais significativo, porém, não foi este desabafo. Foi o modo imperturbável como a imprensa o registou. Talvez tal indiferença ajude a perceber a unanimidade parlamentar à volta da grotesca Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital. Não houve um único deputado que tivesse votado contra. Nem o deputado da Iniciativa Liberal, que aparentemente zela por todas as liberdades menos pela liberdade de expressão, nem o deputado do Chega, que se revolta contra tudo o que é “politicamente correcto”, mas não, pelos vistos, contra os instrumentos que esse “politicamente correcto” pode usar para oprimir. Ninguém, por ali, gosta de “gritaria”.

Nada disto é inédito. Desde que deixaram de servir os reis, as oligarquias políticas começaram a falar em nome do povo e para o povo. Nunca, porém, apreciaram ouvir o povo. A proliferação de meios de comunicação, possibilitada pelas tecnologias, sempre as cansou. Noutros tempos, era porque havia demasiados jornais e panfletos. Hoje, é por causa das redes sociais. Para os oligarcas, o povo nunca soube “usar responsavelmente” nem a imprensa nem a internet: diz o que não deve dizer, começa a pensar o que não deve pensar, desorienta-se – e, pior, desorienta. Por isso, encomendaram frequentemente à tutela e vigilância do Estado a formação de uma boa “opinião pública”. É a filosofia do “direito à protecção contra a desinformação” desta Carta da Era Digital. Já tinha sido a filosofia do Exame Prévio. E por favor, não me digam que é “uma coisa europeia”. A censura também foi, em vários momentos da história, “uma coisa europeia” (o Reino Unido, para não dar como exemplo sítios menos felizes, manteve a censura no teatro até 1968).

A “liberdade de expressão”, como dizemos habitualmente, é a primeira de todas as liberdades, neste sentido: onde não existe, geralmente não existem as outras. Só perante os tribunais, e segundo a lei, um cidadão deve ser obrigado a prestar contas pelo que disse ou publicou. Sempre que quaisquer outras entidades possam de alguma forma constranger o que se diz em público, a liberdade está em causa. É precisamente com isso que nos ameaça a Carta da Era Digital e as suas “estruturas de verificação de factos”. Os únicos “factos” aceitáveis são, como aliás é explicado com um frio cinismo, aqueles que não perturbem a autocrática “elaboração de políticas públicas”. Não, não é um perigo vago. Porque aquilo que a Carta prevê já acontece, desde que as empresas das redes sociais se arrogaram o poder de decidir o que pode e não pode ser publicado.

As empresas das redes sociais nunca assumiram que são “publishers” como os jornais, para evitar as decorrentes responsabilidades. Em vez disso, apresentaram as suas plataformas como simples veículos de uma nova praça pública, para onde tentaram canalizar notícias, conversas, e debates. Conseguiram-no: é através dessas plataformas que hoje a maior parte das pessoas no mundo discorre e discute, dá e recebe informação. Mas se essas plataformas não são jornais, mas a praça pública, então o que as empresas exercem, ao cortarem mensagens e banirem autores em nome do puritanismo “woke”, não é um direito de edição, como o que tem qualquer jornal, mas um poder de censura.

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Há censura, e sobretudo há muita vontade de censurar. Para a extrema-esquerda comunista e radical, a censura é a nova face da revolução. Depois de anos pelas margens, essa extrema-esquerda voltou à área do poder em várias democracias ocidentais. Governa, como em Espanha, apoia governos, como em Portugal, ou constitui grupos de influência em partidos de governo, como nos EUA. Deve-o à fraqueza da esquerda dita “moderada”, que passou a precisar dos votos e do alarido dos extremistas para governar. Nas universidades, na imprensa e nas redes sociais, os extremistas, com a condescendência dos “moderados”, já começaram a exercer a sua parcela de poder. Como? Invocando a causa da inclusão e da defesa de minorias ou dos mais fracos para policiar a linguagem e as atitudes. De facto, minorias e mais fracos são-lhes completamente indiferentes. A única coisa que lhes importa é o poder de perseguição e de “cancelamento” que a invocação hipócrita dos fracos e das minorias legitima. Através desse poder, esperam obter um dia outros poderes.

Mas esta não é a única origem da actual vontade de censura. O mundo mudou nas últimas décadas. No Ocidente, a desindustrialização, as migrações desordenadas, o jihadismo, a crise fiscal do Estado e a revisão oficial de identidades causaram descontentamento, insegurança e controvérsia. Uma parte dos eleitores separou-se dos antigos partidos. O leque de opiniões ampliou-se para além dos velhos consensos. A internet permitiu que todas essas ideias e vozes arranjassem públicos contornando a comunicação social pastoreada pela elite estabelecida. O novo pluralismo provocou nas oligarquias um ataque de pânico. Não estavam habituadas. Começaram, por isso, a tentar inibir toda a gente com os papões do “populismo” e, como não podia deixar de ser, do “fascismo”, o que as fez encontrarem-se tacticamente com a extrema-esquerda comunista e radical. A censura foi esse ponto de encontro. Todos pretendem acabar com a “gritaria”, isto é, as conversas que os incomodam, os debates que podem perder, as notícias que os deixam mal vistos.

É na sintonia entre as oligarquias, preocupadas em eliminar desafios ao seu poder, e a extrema-esquerda, empenhada em “cancelar”,  que está hoje a maior ameaça à liberdade no Ocidente. Se querem falar de “fascismo” no sentido marxista, é este o “fascismo”: a organização dos interesses estabelecidos e dos seus cães de guarda ocasionais para reprimir aqueles que livremente lhes discutem as influências e democraticamente lhes disputam os lugares. É contra esse “fascismo”, umas vezes engravatado e outras vezes de lenço palestiniano, que é preciso defender a liberdade. É contra esse “fascismo” que vale a pena continuar a “gritar”.