O Benfica teve a felicidade de ter tido uma sequência de grandes presidentes nos anos 50, 60, 70 e 80 que ajudaram, e muito, o clube a ter um ciclo de quatro décadas de sucessos desportivos em Portugal e na Europa, inimagináveis. O incrível sucesso desportivo europeu, o seu cariz popular na criação e na contribuição para o crescimento do clube e uma mística muito própria transformaram-no, de longe, no clube mais popular em Portugal, com a maior massa adepta vinda de Norte a Sul do país e transversal à sociedade portuguesa.

Os presidentes eram geralmente empresários bem sucedidos que traziam para o clube a sua experiência de gestão, o seu dinheiro e o seu crédito.

Era gente independente e impoluta que vinha fazer o serviço público ao seu clube do coração, ajudando-o a crescer e a engrandecer. Cumpriam um ou dois mandatos e voltavam para a sua vida privada.

Gostavam genuinamente do clube e de desporto e com a sua competência e, sobretudo, a sua seriedade deixaram o clube com um prestígio desportivo e institucional imaculado.

A estrutura directiva era toda amadora – o presidente, os vice, os chefes do departamento de futebol, os presidentes de secção das modalidades – mas tinha poder de decisão e eram estes quadros do clube que o carregavam com a sua paixão.

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A organização era muito focada no desporto, a formação era valorizada, apreciada e importante para as equipas sénior. Havia oportunidades nas equipas sénior para as promessas vindas da formação em todas as modalidades. O grande Benfica vencedor foi feito com gente da base, dedicada, apaixonada, sonhadora, ambiciosa.

A restante estrutura organizacional de apoio era quase inexistente e por isso as receitas eram muito baixas (marketing, merchandising, bilheteira, etc., etc., etc.), vivendo o clube, por isso, sempre com muitas dificuldades financeiras, muito dependente das finanças do presidente e amigos ricos do clube.

O controlo orçamental era também muito deficiente e o dinheiro fugia por todo o lado. Mas respirava-se desporto, havia paixão, havia benfiquismo, a formação era importante, havia mística e, o mais importante, havia títulos e uma forma de jogar à Benfica que era transversal ao clube e que empolgava os adeptos.

A célebre frase de Joaquim Ferreira Bogalho : “Respeitem sempre o dinheiro do Clube. É dinheiro de gente simples e humilde. É esforço de gente pobre que dá porque gosta muito do Benfica. Sirvam-no . Não se sirvam dele“, reflectia bem o pensamento e a forma de estar na vida e no desporto dessa sequência de grandes presidentes gloriosos.

O desvario dos anos 90, com o quase colapso do clube, trouxe a necessidade e a urgência da profissionalização generalizada da sua gestão e da modernização e crescimento das infraestruturas desportivas (estádio, academia, pavilhões, piscinas, etc., etc.) que proporcionassem melhores condições de treino para quase todas as modalidades, um estádio moderno com melhores condições de assistência aos jogos e menores custos de manutenção e também que ajudasse a potenciar as receitas, que eram muito baixas e que na realidade cresceram todas exponencialmente.

Tudo foi feito e bem feito e o clube salvou-se, mérito das direções de Manuel Vilarinho e Luís Filipe Vieira .

Mas, por ignorância desportiva, ou por falta de gosto pelo desporto, ou por desconhecimento do passado do clube, ou por outras razões que os tribunais apurarão, pensou-se que a superestrutura profissional e as melhores infraestruturas do país eram a panaceia para todos males do Benfica.

Ou seja, a partir de agora, gerir o Benfica era a mesma coisa que gerir uma grande empresa de gás natural, de correios, ou de construção civil. Bastava comprar o melhor cimento e o melhor tijolo do mercado, juntá-los e, ajudados por uma boa equipa de comunicação para vendê-lo, era certinho, seriam vitórias atrás de vitórias.

Mas não é assim e não aconteceram vitórias atrás de vitórias.

Conceitos como benfiquismo, dedicação, serviço público, paixão por desporto, cultura de clube, mística… tudo o que no passado tinha feito o Benfica glorioso eram coisas ultrapassadas e nesta altura só atrapalhavam e eram para descartar da gestão corrente.

Por exemplo, na formação do futebol não se vê uma referência do passado como treinador ou director de equipa. Foram todos para o museu.

As políticas desportivas foram substituídas pela implacável folha de excel, os jogadores passaram a ser “activos financeiros” que foram sendo adquiridos sem uma lógica de conjunto de equipa e de perfil, mas numa lógica de compra-valorização-venda e no final acabamos, quase sempre, com um conjunto de activos financeiros, supostamente muito valiosos, mas que não funcionavam como equipa e, por isso, em 18 anos somos cada vez mais inexistentes em termos europeus e a nível nacional deveríamos ter ganho muito mais, tendo em conta o valor dos investimentos realizados.

No fim, como as principais receitas vêm do sucesso desportivo, sobretudo via Liga dos Campeões, onde raramente fomos longe, tivemos sempre de recorrer às receitas da mercearia desportiva. Haverá sempre venda de jogadores e esta será sempre uma receita importante, é uma inevitabilidade, mas não podemos deixar sair os nossos melhores prematuramente sem deixarem o Benfica campeão.

Temos que romper o ciclo vicioso.

Não me interpretem mal, o dinheiro é importante, a gestão profissional é necessária, as contas saudáveis são fundamentais, mas o dinheiro só interessa se for utilizado para atingir um fim e o fim do Benfica são as vitórias desportivas, nada mais. Mas para que o dinheiro seja bem utilizado e resulte em sucessos desportivos tem de haver mais competências desportivas no clube e uma ideia forte de política desportiva orientadora. Tem que se voltar a gostar de desporto no Benfica, deixando o clube de ser somente um puro negócio comercial.

Tem que se voltar a falar de desporto e de políticas desportivas em todas as modalidades e são estas políticas que têm de orientar todo o clube.

As bases, que foram em tempos a mola real da cultura e do benfiquismo, têm de voltar a ser valorizadas, a ter mais autonomia e a mandar. As direções, como já aconteceu em tempos, têm de ter a humildade e a sensibilidade desportiva para estar mais perto das bases e ouvi-las. A organização tem que mudar, não ser tão centralizada, para responder com mais rapidez e flexibilidade aos seus clientes internos, as modalidades desportivas.

Um exemplo paradigmático no clube rival: o Aurélio Pereira foi para mim a figura mais importante do Sporting dos últimos 30 anos. Descobriu e trouxe o ouro para o seu clube que, para bem do meu, os sábios tecnocratas desperdiçaram totalmente com os seus fantásticos business plans muito em voga na altura. O Aurélio Pereira é um homem das bases e do desporto, não veio de um escritório de advogados ou de um fundo de investimentos.

E preciso voltar às bases e ao desporto e isto vale para todos os clubes, mas sobretudo para o meu.

Por muito dinheiro que movimentem os clubes, sobretudo em Portugal, serão sempre um espaço de emoções e de paixão e têm de ser comandados por ela, mais ainda num país pequeno e pobre, onde as receitas são e serão sempre infinitamente inferiores ao resto da Europa rica.

O Rui Costa poderia ter sido o nosso homem da base. Tem história no clube, tem benfiquismo e foi jogador de topo, mas infelizmente alinhou olimpicamente no jogo da mercearia desportiva  Como director desportivo, infelizmente, ou por falta de força para impor as suas ideias ou por falta de ideias, nunca se percebeu que tivesse uma linha orientadora, uma convicção forte quanto a política desportiva.

Aliás, agora como presidente tem oportunidade para mostrar que consegue fechar um plantel que, mais uma vez, com a competição à porta, continua cheio de indefinições, desequilíbrios e lacunas.

Não vou mexer no passado recente nem vou julgar. É terrível, mas é passado, deixarei os tribunais e as auditorias apurarem a verdade. E é importante, neste momento, não abrir mais feridas e haver serenidade para os próximos desafios importantíssimos.

A direcção actual, que anda a fingir de morta há anos, deve repor a dignidade no clube e promover urgentemente uma auditoria. E marcar, quanto antes, uma data até ao fim do ano para realizar eleições, não deixando dúvidas a ninguém e assim contribuir para unir os sócios.

Não chega apelar à união com palavras é preciso contribuir para a união com actos. Com as eleições no horizonte, se queremos voltar a ser a máquina competitiva que já fomos, quem se candidatar tem de apresentar uma ideia desportiva clara para o futebol, mas também para as modalidades, e comprometer-se com ela, definindo qual a estrutura desportiva que a vai implementar a começar pelo director desportivo.

Não vale a pena virem com mais e longos business plans e máquinas de comunicação para os vender, com uma longa lista de receitas milagrosas trazidas sobretudo das grandes empresas e que nada têm a ver com a especificidade do negócio “desporto”. O clube anda perdido desportivamente, precisa urgentemente de se reencontrar e é muito importante focar-se no fundamental. Neste momento, o único business plan de que precisamos é o plano desportivo com as pessoas certas para o implementar, de modo a recuperarmos o prestígio europeu e acedermos às receitas fundamentais da Liga dos Campeões que vão fazer catapultar todas as outras receitas.

O Benfica está num momento muito difícil e crucial da sua história.

Mais do que nunca é preciso benfiquismo para não se entrar numa corrida desenfreada de lançamento de listas, a maioria delas com certeza muito impreparadas, sem real conhecimento do clube e muito assentes em projectos pessoais que poderão prejudicar, e muito, a eleição de uma lista forte e preparada.

Precisamos de um líder e de uma direcção com carreiras e experiências profissionais sólidas para gerir um clube com a dimensão do Benfica, mas sobretudo que tenham conhecimento do passado do clube, que venham para servir e não para se eternizarem no clube, que gostem genuinamente de desporto e que de alguma forma tenham tido alguma vivência no desporto que lhes dê a sensibilidade desportiva, capacidade que ajuda muito para gerirem este negócio com sucesso. Que tragam paixão, humildade e ética.

Eu sei que a ética em Portugal, no século XXI, se tornou num conceito muito abrangente e flexível. Nos dias de hoje, ética é muitas vezes confundida com legalidade, mas são conceitos muito diferentes. Um presidente ter conhecimento, por exemplo, que se anda a vender 25% da SAD e não informar os sócios, e pelos vistos nem mesmo a direcção do clube, pode ser legal (acho que é ilegal, mas o tribunal decidirá ), mas não é de certeza ético. *

E é de ética que precisamos, não é de legalidade nem de advogados nem de tribunais. Só o regresso à ética, ao desporto e ao benfiquismo nos fará regressar à glória desportiva.

* Por falar em venda de ações, não consigo perceber porque é que a SAD não comprou ações próprias e não ficou com as mais-valias.