O assunto já foi comentado por muita gente, mas é de tal forma paradigmático de uma forma de pensar perniciosa e mesquinha que parece alastrar, na sociedade portuguesa e não só, que me sinto compelido a contribuir para a conversa. Refiro-me à nova vida de Pedro Passos Coelho após a sua saída do Parlamento e as reacções que desencadeou.

Começo pelas reacções: violentas, quase descabeladas, em particular nas redes sociais. Já escrevi várias vezes sobre o papel destas na redefinição do espaço público, o que me tem valido ser zurzido nesse mesmo espaço público. Tudo normal. Escreveu Dominique Chardon: “A Internet ensinou-nos que, para alargar o círculo da expressão pública, é necessário tolerar os enunciados na primeira pessoa, os pontos de vista assumidos, as vozes irrisórias, as afirmações peremptórias, os comentários ousados, poéticos, maníacos, engraçados e vibrantes.” (citado por J. M. Caselas). Alargar o círculo da expressão pública é bom, toleremos por isso os enunciados peremptórios, mas resistamos quando se tornam virais e infectam o tal espaço público. Responder-me-ão que exagero e que as redes sociais não são assim tão mesquinhas. Não sei que outro adjectivo poderá merecer um comentário como “Passos foi de Massamá ao Restelo a cavalo na vida política pública” e outros de ainda mais baixa extracção.

Continuo com algo que me parece óbvio: um ex-governante não pode dar aulas, também não pode trabalhar numa grande consultora (estilo Goldman Sachs?), muito menos numa empresa pública, era o que faltava, sequer numa privada, terá sido troca de favores. O que pode fazer? Se quiser evitar o pelourinho da opinião pública, não pode trabalhar. Do que viverá então? Reformulo a frase: do que viverá, se não for rico? O espaço público 4.0 responderá o que se está mesmo a ver que vai responder: “eles” são todos ricos. “Encheram-se”. E se não se tiverem enchido? Não interessa, não podem trabalhar.

Exigem-se bons políticos, melhores e incorruptos. Mas como, se sê-lo é estar exposto a um escrutínio impiedoso, já não apenas da comunicação social clássica, mas da Internet, que nada esquece, tudo regista e tudo regurgita no momento asado? Ser político é esperar ver a qualquer momento, sem aviso, os rendimentos, obrigatoriamente declarados, expostos em público; tal como a vida privada e a da família; qualquer acto do passado, o comentário infeliz que todos temos, desabafo politicamente incorreto, na 1ª página de jornais, imagem em TVs, pasto das caixas de comentários e dos posts em blogs, FB ou twitter. E depois de anos a viver sob o cutelo da exposição pública, não tendo enriquecido sem causa nem sido tentado pelo demónio da corrupção, não trabalhar, sob pena de ser colocado no índex das indignidades.

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Este é o primeiro ponto. Sobre a reacção da Academia, ou de parte dela, ao anúncio da contratação pelo ISCSP de PPC, remeto para o excelente artigo “A Universidade que temos” do Alexandre Homem Melo. Está lá tudo explicado. Só não concordo quando diz que apenas importa discutir o sistema universitário, “erigido sobre pequenas teias de influência, lealdades, invejas e redes de poder”, sendo tudo o resto ruído. Não é e salto para o terceiro ponto:

Ao ler cuidadosamente os comentários publicados na imprensa e nas redes sociais, saltam à vista dois argumentos, um de natureza política, e o outro também. Em primeiro lugar, escreve-se contra PPC por ser do PSD, ou da direita, como quiserem. Por ser de direita é contra a escola pública e portanto (as inferências não são minhas) não devia ter lugar a sua contratação por uma… escola pública. E em segundo lugar, ataca-se o ex-líder do PSD por ter conduzido o país em austeridade, provocando sofrimento e miséria.

Sobre o primeiro preconceito recordo que são muitos e de há muito os professores convidados saídos da política, de distintos quadrantes, em diferentes escolas públicas da nossa Academia, o que nunca deixou de ser visto como uma escolha de mérito: foi o caso de Guterres em 2003, de Ângelo Correia, António José Seguro e tantos outros. Valoriza as Escolas que escolhem a experiência e o mérito, não apenas da vida estudada e reflectida, académica, em suma, mas de profissionais com provas dadas em domínios relevantes para os currículos ensinados. E os alunos, rejeitada a cegueira ideológica ou a militância partidária ultramontana, que confunde os planos da governação, a política e Academia, serão os maiores beneficiários dessa experiência, mais-valia em Portugal e no mundo civilizado.

Há anos, a Luís Sá foi recusado um lugar como Professor neste mesmo ISCSP, alegadamente por ser comunista. O valor de Sá, intelectual e profissional reconhecido, merecia reconhecimento na Escola que o formou (onde fez mestrado e doutoramento), mas preconceitos ideológicos, felizmente recusados no caso de PPC, impediram o que seria um acto de justiça – e um enriquecimento para a instituição e para os alunos. Infelizmente também, a Luís Sá não pôde ser corrigida a injustiça, pelo seu prematuro falecimento.

Quanto à governação de que PPC foi responsável, só a História decidirá. Pessoalmente, julgo que fez o melhor que sabia e podia, tendo provavelmente impedido males maiores, num país à beira da bancarrota e sob tutela externa (a “troika”). Não tenho com ele relação próxima, nunca fui seu íntimo nem dele dependo, mas estou certo que agiu com espírito de servir e boa fé. Mas, repito, a História julgará, e não há melhor juiz do que ela. Sem esquecer, claro, que foi a escolha primeira dos portugueses em duas eleições, em 2011 com o PSD e em 2015 coligado com o CDS, independentemente da posterior solução governativa.

Quarto ponto: julgo quase despiciendo discutir o título que lhe foi atribuído, apenas uma forma de viabilizar as funções que vai exercer e que não seriam possíveis sem essa atribuição. E quanto a saber se PPC tem qualificações para ser professor universitário, último ponto desta minha breve intervenção, julgo-a a mais abstrusa e mesquinha das objecções ao convite que lhe foi feito. Um ex-primeiro ministro tem uma experiência na área em que vai intervir academicamente difícil de igualar; pois é uma experiência, como escreveu lapidarmente Sérgio Sousa Pinto, um socialista, “única e valiosa”. E afinal o cargo mais elevado de um governo, que rege os destinos de todos nós, não pode ser menor e irrelevante, tanto que impeça quem quer que seja, chame-se PPC ou outro qualquer, de exercer funções como professor universitário.

Celebremos pois uma decisão correcta e justa, livres de considerações mesquinhas, corporativas ou de aguda partidarite, não permitindo que “as vozes irrisórias, as afirmações peremptórias, os comentários ousados, poéticos, maníacos, engraçados e vibrantes” levem a melhor sobre o nosso bom senso e nos obscureçam os sentidos.