Num Mundo crescentemente desconfiado da política e dos políticos, há quem esteja na política insciente do dano que causa à imagem da classe a que pertence. Porquê?

Eu explico: porque é que quem se envolveu em actividades ilícitas ou imorais, torceu a norma para a adaptar aos seus interesses, usou meios duvidosos para atingir fins só seus, mentiu, ocultou ou falsificou informação ética ou moralmente exigível, se sujeita ao escrutínio cruel e feroz que o espaço público contemporâneo impõe aos seus servidores?

Refiro-me a quem tenha apetência pela coisa pública, queira servir os seus compatriotas e contribuir para a adopção de políticas públicas de sucesso. Pode ser um independente ou ter seguido o caminho das pedras da política partidária, essencial para o correcto funcionamento da democracia. Ao seguir um ou outro caminho, esse alguém assume uma obrigação: deve manter todos os aspectos da sua vida privada (e da pública, mas essa é evidente) ao abrigo de suspeitas, e de suspeitas se trata, porque cada vez mais, à mulher de César e ao candidato a político não basta ser honesto, tem de parecê-lo. Num artigo de 2010, escreveu Dennis F. Thompson, professor de teoria política em Harvard:

“Embora muitos se queixem do clarão da publicidade, muitos continuam a procurar cargos públicos. A questão não é se alguns decidem evitar esses cargos por causa da possibilidade da exposição pública, a questão é que tipo de pessoas o faz. Não há dúvida que alguns cidadãos admiráveis que seriam excelentes servidores da causa pública desistem de o fazer. Mas, decerto, alguns cidadãos menos admiráveis, com muito a esconder, rejeitam a exposição por receio que antigas (e actuais) transgressões venham à superfície. Se este último grupo for maior – e o número de pessoas de qualidade com vontade de servir não diminua -, então a perspectiva da exposição pública tem um efeito favorável na qualidade do recrutamento”.

A pergunta fundamental mantém-se: porque aceitam tantos cidadãos menos admiráveis assumir cargos públicos sabendo haver na sua vida pecados, erros grosseiros, transgressões ou até crimes, que a qualquer momento os exporão à pública censura, tornando-os párias? Que, subindo a lugares públicos relevantes, expostos ao foco do escrutínio do espaço público, apenas sobem para logo caírem, quais Ícaros deslumbrados, deixando na sua esteira um rasto de cinzas e reputações chamuscadas, a primeira das quais a da própria política, o serviço público que cuidaram servir.

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A razão parece-me óbvia, permito-me partilhá-la sob forma de opinião:

Vaidade, mãe da cegueira e filha da soberba. Esses seres menores incapazes de autocrítica, acham-se tão elevados e superiores aos mortais comuns que os rodeiam, que no mínimo sentem como estupidez alheia a não consideração da sua pessoa para os cargos que a sua ascendência, cabedais ou superior inteligência justificam. E é tão evidente essa superioridade, tão essencial para o futuro da pátria a sua providencial existência, que não serão pequenos pecados, insignificantes face ao valor imenso que acrescentam, a dever impedi-los de cumprir o seu dever, que digo, a sua missão transcendental.

Espero que me perdoem o arroubo de cabotinismo, não resisti. Mas o essencial permanece: o político que falsificou o currículo de forma grosseira; o que traficou influências sem pejo nem limites; o que tem um historial de violência doméstica de que é perpetrador; o pedófilo, o agiota, o corrompido; quem numa altura qualquer da vida cometeu qualquer tipo de felonia, deve recusar o convite para um cargo público, integrar uma lista, evitando colocar-se no pelourinho da opinião pública da era digital.

Não trato aqui de corrupção política no exercício do poder, classicamente definida como “abuso de um cargo público para um ganho privado”. Quem está numa posição de poder tem a obrigação de entregar benefícios tangíveis a quem aí o colocou, ou seja, ao soberano povo eleitor. Deve servir e não ser servido. Mas hoje, a minha interrogação está a montante disso e resume-se assim: porque é que a mulher de César e os políticos em ascensão desafiam o juiz impiedoso e célere que é a opinião pública em tempos de fúria? Se o que está por baixo da sua armadura não for impoluto e à prova de suspeitas, deviam recusá-lo. Porque não o fazem?

Por ambição, prima da vaidade.

Mas sejamos condescendentes e procuremos definir os limites da relevância da vida privada de um cidadão para o exercício de funções públicas. O que é que não é tolerável? Falsificar um currículo? Inventar uma formação académica? Ter um passado de toxicodependência? Ter defendido posições manifestamente homofóbicas, machistas ou nazis? Volto a recorrer a Thompson e ao padrão que propõe: “a conduta privada deve ser revelada na medida em que seja relevante para a performance no cargo público”. O professor de Harvard, que escreve em 2010, considera tratar-se de uma questão de equilíbrio e sugere os seguintes critérios para determinar o ponto em que esse equilíbrio se quebra: o quão pública uma conduta se pode provar, o quão relevante o defeito em causa é para o trabalho a desempenhar, o quão legitimamente expectável seja a reacção pública e de que forma a exposição da falha pode distrair os cidadãos de assuntos verdadeiramente relevantes para a sua vida e o seu futuro.

Em tese, faz sentido. Na prática, a disseminação e a intensificação do espaço público digital, virtual e global, torna irrelevantes essas considerações e critérios. Hoje, qualquer pequena falha se pode generalizar rapidamente, sendo embora irrelevante para a função a desempenhar e escondendo outros males da sociedade afectada. Não importa, pois a pessoa envolvida, entretanto, “morreu” política, social, profissionalmente, os políticos retrogradaram mais um pouco na consideração geral e a agenda volta a mudar depressa.

Pequenas falhas, erros antigos, (má fortuna e amor ardente) todos temos. Mas nestes tempos de política instantânea, de clichés e de uma memória colectiva que oscila entre o imediato e a perpétua preservação de tudo, devemos medir bem as consequências prováveis da exposição pública dessas falhas e desses erros.

Face à proliferação de vaidosos menos admiráveis, talvez os responsáveis políticos pudessem considerar um exercício simples, mas valioso: avaliar exaustivamente o currículo dos seus candidatos (convidados, etc.), com direito a inquirição e contraditório. O ónus da prova ficaria do lado do postulante (candidato, etc.) e em caso de dúvida sobre, sei lá, um diploma apócrifo obtido em obscura instituição de ensino, dúvida insanável, seria o convidado (postulante, etc.) excluído do exercício da coisa pública.

Irrevogavelmente. É só uma ideia, claro.