1 Ainda este momento político: não duvido que para o PS e (ainda) para muitos portugueses António Costa é um “excepcional” político. Tão hábil em levar qualquer água ao moinho da sua maior conveniência; tão talentoso a negociar a seu favor, tão prodigioso com os seus a ponto de os confundir com o país, tanto jogo de cintura. E há sete anos ao leme, coisa formidável. Logo após a intervenção presidencial na noite de 2 de Maio o PS – ou quase todo o PS – fez constar que rejubilara. O Grande Costa, encenando-se a si mesmo, desafiara o Chefe de Estado, exibira mando, reforçara o poder, impusera novas regras . Costa “derrotara” Marcelo. O eco dos discordantes socialistas desta (alucinante?) tese era uma brumosa surdina frente à arrasadora certeza de uma vitória com carácter definitivo. Sucede que, hélas, uma “bravata” não substitui uma governação, nem um instante de ilusória glória redime a falta de legado governativo. Para além da panache do Primeiro Ministro, atrás do biombo do seu gesto, continua o mesmo país que já lá estava. Com as contas certas e o resto errado. A bravata e a panache esgotaram-se nelas próprias, estampadas contra a imperiosa necessidade de sobrevivência política de alguém atarraxado ao poder com pregos de aço. Claro que será diminuto o núcleo de portugueses que concordarão comigo ou acharão apropriado o mote da “sobrevivência” aplicado ao Primeiro Ministro, mas é lá que me incluo. E onde, ou muito me engano, se inclui também o próprio António Costa que percebeu estar já nessa rota (e não nos intimou ele a também concluir isso mesmo com a “natureza” da sua invectiva contra o Chefe de Estado?) Assim parece: apesar de dominar o Estado, apesar do leque de aumentos ou (fictícias) benesses que abrirá para o povo, dos truques que tirará da cartola para lhe cativar o voto, apesar dos milhões que irá despejar sobre o país nos meses anteriores às eleições europeias. (Dizem que a aplicação do PRR se atrasa a cada dia. É verdade: mas não será sobretudo porque está “guardado” para que com ele e através dele se fazerem fogachos e deitarem serpentinas quando for o tempo eleitoral delas?)

2 Em Belém nesse mesmíssimo serão de 2 de Maio não se duvidava que o Chefe de Estado fora um autêntico Chefe de Estado: serenidade institucional, autoridade sóbria, discurso pedagógico, argumentação forte, frontalidade, clareza. Impacto. É verdade. Podia apetecer acreditar. (O Presidente da República resistiu até a, pela “enésima” vez, pronunciar a desacreditada palavra “dissolução”… um feito que lhe foi altamente recomendado horas antes da sua intervenção por um amigo do peito). Mas com sete anos de atraso e 24 horas após a incontida prova de um gelado diante das (devidamente avisadas) câmaras de televisão era legítimo e verosímil que a perplexidade se instalasse: acreditar? Entre a fundamentada perplexidade causada por um, Chefe do Estado e a torpe encenação do outro, Chefe do Governo, fiquei com a perplexidade. Nove dias depois, talvez nem com um, nem com o outro.

É certo que o actual Presidente tem uma invulgaríssima de tão exclusiva “ideia” da instituição presidencial. Das suas funções constitucionais e políticas, do modo com as mobila, dos comportamentos com que as interpreta. Mesmo assim. Não é de todo a mesma coisa para o país e para uma plateia de nove milhões de portugueses ter um Presidente da República que escolheu agir assim do que não ter, e basta relembrar (não foi assim há tanto tempo) os seus quatro antecessores naquela mesma morada: a nenhum ocorreu ter já tirado (talvez nove) milhões de selfies, para pré-garantir ser ininterruptamente amado; a nenhum passou pela cabeça, num momento sério da vida nacional, expor-se de tal modo que permitisse a uma jornalista interrogá-lo publicamente sobre a sua cor partidária de gelados, laranja ou rosa? Um divertissement com assinatura. Não pode acabar bem.

Mas como o futuro a Deus pertence, apoio-me no presente: o Presidente da República anunciou solenemente que ia mudar. E solene era o local, o speech impresso, o olhar por uma vez um pouco mais fixo no recado e menos vertiginosamente à procura de onde se pousar. Ia mudar: passará a estar supostamente mais atento e a ser supostamente mais severo. Sendo coisa por verificar (a atenção tem sete anos de atraso político e qual o modelo de severidade?) percebe-se o “enjeu”: o anuncio anuncia-nos que o Presidente também percebeu que tem pouco tempo para que a História lhe não seja madrasta. Para que a sua solidão que aqui mesmo e em livro já tanto evoquei como um factor funesto não venha a dar cabo do homem, do intelectual, do político e do Chefe de Estado; para que o seu eleitorado não lhe vire de vez a cara, quando daqui por três anos mas o tempo passa depressa, se despedir daquele Palácio. Ironicamente tão cor de rosa como os anos leves e deslizantes que até hoje ele leva lá dentro. Rosa como as suas paredes, como a cor do PS, como foi até há dias a sua relação com a família socialista. Cor de rosa como um gelado assassino.

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3 De modo que um, António Costa, vai tentar sobreviver politicamente em duas frentes: como chefe do governo para chegar a Bruxelas, habitat de um possível, previsível e amado destino; como o único chefe da tribo socialista, com tempo e credibilidade para nomear o seu sucessor. Parece evidente, pode não ser fácil.

O outro, Marcelo Rebelo de Sousa irá tentar redimir-se de um passado longo de mais “dentro” do PS, da atenção que não teve para com os governos, da severidade que nunca usou para com as esquerdas. Da ferocidade desproporcionada que praticou sempre para com o PSD. Alguém acreditará? O Presidente importar-se-á sempre menos com essa dúvida do que com o veredicto da História.

Falou-se muito — eu também, mea culpa – em ganhadores e perdedores. Hoje com algum recuo e tida alguma reflexão, continuo a achar obviamente o país como ele estava — um caso perdido por mais de uma geração — e não considero que haja vencedores nem vencidos. Há dois cavalheiros que o pátria teve a pouquíssima sorte — essa sim, madrasta — de ver coabitar como número um e numero três do nosso pobre Estado. Há sete anos que penso isto mesmo e que atribuo a essa simultaneidade desastrosa, que tanto agrada a tantos, a causa de quase tudo o que de mais lesivo aconteceu em Portugal (um dia ainda hei-de voltar a este tema).

4 Tudo isto faz mal e faz pena mas tenho mais pena do futuro. Faz pior e mais pena pensar no futuro. Com tão inquinado solo, tão fracas sementes, tão maus semeadores, o substantivo quase dói. Não há racionalidade que suporte a sua esperança, nem se vê quem nesse tal futuro, surja como capaz de pensar — e de levar os portugueses a pensar — a pátria como ideia, pertença, obrigação. Largando de vez as amarras desta sonolência demissionária. Tenho até uma sincera, genuína, real aflição antecipada pelos herdeiros políticos do presente. Deste.

Desculpem qualquer pessimismo.

PS: Em Maio fui, noutro Maio saí.  Quando entrei a estação noticiosa ainda se chamava TVI 24, agora foi da CNN que me despedi esta semana. Não se pode ter tudo. Passaram exactamente dois anos. Trouxe comigo momentos de enorme, vibrante, brio profissional, outros de inconfessável  — por agora – alguma desilusão. Também não se pode querer tudo, mas minha intuição não me costuma deixar mal.