A habituação à pandemia e ao «confinamento» fez com que os números nos pareçam relativamente baixos em comparação com os países mais próximos de nós, como Espanha e Itália, onde continuam a morrer centenas de pessoas diariamente. Trata-se, contudo, de uma perspectiva distorcida, pois as comparações habitualmente feitas na comunicação social omitem as desproporções populacionais. Dito isso, se é certo que a desproporção populacional está longe de explicar a pior performance daqueles dois países comparados com Portugal, ela também não explica a nossa melhor performance. Em suma, o governo tem feito reinar em torno da pandemia uma opacidade deliberada e não há nos «media» portugueses nada que se assemelhe às apresentações estatísticas diárias do jornal «El País».
O resultado da forma de apresentar a situação da pandemia entre nós é que, dado o facto de tanto o número de «casos confirmados» como o de óbitos devidos ao coronavírus divulgados diariamente pela Direcção Geral de Saúde (DGS), serem reconhecidamente inferiores à realidade, ficamos sem uma visão exacta da dimensão da pandemia e ignoramos se as diferenças entre a DGS e outros agentes informativos, como as autarquias nomeadamente, são grandes ou pequenas. Eu estou convencido que não são negligenciáveis!
Num balanço rápido, muita da informação fornecida pela DGS e difundida sem crítica pela comunicação social deixa numerosos dados por explicar, devido quanto mais não seja à linguagem opaca com que as séries de dados são designadas, isto para não falar das omissões deliberadas! As omissões mais graves, cujo rasto será impossível de recuperar a posteriori, são as que dizem respeito aos óbitos, nomeadamente as mortes por concelhos de residência, assim como o lugar das mortes (hospital, casa, «lar de idosos», etc.).
Quanto aos óbitos por faixas etárias e por sexo dos falecidos, os dados existem mas só figuram em informações menos divulgadas da DGS (por exemplo, não figuram no «Observador») e todavia constituem um dos aspectos demográficos mais complexos do ponto de vista médico. Porquê? Porque se trata à partida de pessoas idosas de saúde frágil cuja morte pode até não ter sido provocada directamente pelo coronavírus mas apenas acelerada por ele… Ora, trata-se da percentagem muito elevada de óbitos registados nas faixas etárias dos 70-79 anos (mais mulheres que homens) e, sobretudo, dos 80 em diante (mais homens que mulheres).
Que explicação? Ora, o perfil de mortalidade da pandemia não é diferente do da população em geral, assim como o número divulgado pela DGS pouco peso relativo tem tido até aqui na mortalidade habitual em Portugal, ou seja, o número de óbitos por Covid-19 é equivalente a menos de dois dias segundo a média diária nos últimos doze anos.
Esta deliberada opacidade dos dados oficiais manifesta-se, além disso, na obscura terminologia da DGS. Passo a nomear: por exemplo, o que são «amostras»? Trata-se das alegadas centenas de milhar de testes realizados – por quem? Onde? Quando? Quantas «amostras» de cada tipo? Há mesmo umas «amostras processadas» cujo número não é fornecido! E de que são concretamente «suspeitos» mais de 150.000 pessoas? Continuam a ser «suspeitos»? Há mais de 26.000 «em vigilância»: são outros tantos «suspeitos»? Fizeram-lhes testes? Em que condições deixam de ser «vigiados»? Mais de 4 mil «aguardam resultado» mas não se sabe de quê? Quando chegam ao fim da espera, são para juntar a que outra categoria? Às «amostras»? Aos «suspeitos»? Aos «vigiados? Informação inútil!
Além disso, há um número aparentemente baixo de «internados»: é o número diário tendo em conta as entradas e as saídas? Porque não se indica o número de todas as pessoas que passaram por um internamento e por quanto tempo em média? E o que significam, para os leigos, essas escassas centenas de «UCIs» (presume-se que se trata dos cuidados intensivo)? Quantas camas e ventiladores há disponíveis? Trata-se do volume diário resultante das entradas, saídas e óbitos? Em suma, pergunta-se: a DGS não sabe ou não quer apresentar estatísticas que o público perceba?
Por fim, temos o silêncio tipicamente ideológico acerca do «sector privado»: sabe-se que este sector fez inúmeros testes, assim como consultou e hospitalizou um número desconhecido de «casos», mas não se sabe qunatos se traduziram por curas ou por óbitos… O governo podia e talvez até devesse ter «mobilizado temporariamente» as instalações de saúde privadas ao abrigo do «estado de emergência», mas não quis fazê-lo, provavelmente para não pagar as despesas de funcionamento, e reduziu o sector privado ao silêncio, como se este não existisse e não representasse um terço da despesa em saúde em Portugal.
Em suma: foi esta forma deliberada e generalizada de desinformação acerca da pandemia que tornou impossível aos cidadãos responderem às inquietantes dúvidas que agora o primeiro-ministro revela acerca da escolha entre continuar o confinamento ou resgatar a economia!