Notei algum rebuliço pelo facto de se entregar a uma actriz negra o papel de Pequena Sereia. Antes de me envolver na excitação, fui investigar o que é a Pequena Sereia. Desisti ao perceber que é uma bonecada da Disney. Não é que eu não goste da Disney. Sucede que preferia ser levemente molestado num beco escuro por uma tribo de campistas do Bloco a ter de consumir qualquer dos produtos que essa empresa produziu nos últimos 50 anos (salvo o “Uma História Simples”, do David Lynch, que deve ter sido engano).
Voltando ao tema, pelos vistos a Pequena Sereia era branca e agora é negra. E? Tendo andado afastado dos estudos de criptozoologia, não me recordo de que cor são as sereias. Também é natural que as haja de várias cores e subespécies, como os atuns. E o pormenor de serem um bicho (meio bicho, vá) mítico faz com que, em matéria de pigmentação, o céu seja o limite. Por mim, tudo bem. O importante é que as crianças fiquem contentes.
Das crianças brancas, vermelhas, castanhas e amarelas, não sei. Ao que consta, as crianças negras ficaram felicíssimas. Li não sei onde que, ao saber da nova sereia, uma criança negra correu radiante para a mãe: “Ela é igual a mim! Ela é igual a mim!” Para a petiza em questão, todos os negros são iguais. Descontando o leve aroma a racismo, é bonito, quase comovente. Eu próprio me senti assim quando descobri que a voz do Homem do Bussaco pertencia a um caucasiano. Foi há meia dúzia de anos, mas a minha mãe não compreendeu as razões da algazarra.
Qual o problema de negros desempenharem papéis cinematográficos antigamente desempenhados por brancos, incluindo sereias, unicórnios, os Estrumpfs do “Avatar” e o Monstro do Lago Ness? Nenhum. Se não estou em erro, uma das características do cinema é que as pessoas façam daquilo que não são. Por muito que isto possa chocar os distraídos, De Niro não era realmente taxista, boxeur ou chefe da Máfia. E Denzel Washington nunca foi piloto comercial, activista ou advogado. O primeiro é um cavalheiro que emite opiniões imbecis e o segundo é o melhor actor em actividade (Robert Duvall reformou-se, presumo). E, logo que lhes paguem, ambos fingem ser coisas diferentes.
O problema não é esse. Um dos problemas é a questão da plausibilidade. Convém que o actor ou a actriz escolhidos para uma personagem convençam o público de que, durante duas horas, eles “são” a personagem em causa. Se esta for uma sereia, uma sardinha, o Bigfoot ou um gatafunho da Marvel, a tarefa não é complicada. E, desde que os intérpretes sejam competentes e as idades compatíveis, continua a não ser difícil aceitá-los em papéis ficcionais “realistas”, de cirurgiões a mendigos. O caso é mais delicado nos papéis de figuras da História, a grande ou a pequena. Em princípio, não se põe uma adolescente com 1,50m a simular Lincoln, ou um velhinho surdo a fazer de Whitney Houston. E é um nadinha esquisito que se ponha uma negra a interpretar Ana Bolena.
No entanto, a consorte (e que sorte) de Henrique VIII numa série da HBO é mesmo negra, liberdade criativa tolerável se não implicasse novo problema, o da unilateralidade. Explico: é óbvia a tendência para empregar actores negros em papéis consensual ou evidentemente “brancos”. Descontada a irreverência infantil do exercício, daí não viria mal ao mundo. A chatice é que o mundo ameaçaria explodir à mera sugestão de um actor branco “ser” Martin Luther King ou um escravo anónimo do século XVIII. Mudar a “etnia” da rainha de Inglaterra é um acto arrojado, “branquear” na tela a rainha de Sabá seria comparável ao Holocausto. Ou pior: constituiria o crime de “apropriação cultural”.
Além de particularmente estúpido, a “apropriação cultural” é um conceito deliciosamente vago. Ao contrário do que poderia parecer, não se verifica se, por exemplo, um índio da Amazónia veste calças ou um chinês come um hambúrguer. Ou uma negra americana interpreta uma monarca britânica. Por motivos insondáveis, a “apropriação cultural” somente pode ser cometida por brancos, os responsáveis por cada calamidade na Terra. (Em fita recente, e decerto medonha, “The Woman King”, vende-se a patranha de uma guerreira africana que exorta o seu reino do Daomé a desobedecer aos ingleses e a abolir a lucrativa colaboração no tráfico de escravos; patranhas à parte, a exortação veio de Londres, e a abolição foi temporária.)
Se deixarem à solta o movimento “woke”, e em Hollywood já deixaram, às tantas será impossível a um actor branco arranjar emprego excepto na recriação de Goebbels, ou literalmente a servir às mesas. Jordan Peele, de quem não voltarei a consumir um produto, já afirmou que jamais terá um protagonista branco. No limite, um branco nem sequer poderá vestir a pele (sem trocadilho) de outro branco. Recentemente, a escolha de James Franco, filho de um português e de uma judia russa, para interpretar Fidel Castro, filho de espanhóis, suscitou polémica. Dado que privilegiam o berreiro em detrimento das leituras, acredito que os defensores da pureza racial pensem que o Carniceiro de Havana possuía sangue Azteca, e pretendam preservar imaculada a sua memória. Além de divertida, a “racialização” em curso é assustadora. E demasiado semelhante a tempos passados, ou que se julgava passados. Na essência, um tempo em que actores negros não conseguiam trabalho por serem negros não difere de um tempo em que o conseguem apenas por serem negros.
Eles lá sabem. Por mim, não verei “A Pequena Sereia” (sendo tão pequena, não mereceria a interpretação de uma anã?). Não por causa da cor da actriz, claro. É que as sereias sempre foram associadas a tempestades, naufrágios e desgraças afins. Hoje, para cúmulo, associam-se à Disney.