A reclamação é uma instituição social importante. Numa sociedade que pretende ser um estado de direito mas que é complexa e que tem de se aceitar como tendencialmente conflituosa, a reclamação, quando bem gerida, é uma das formas de escrutínio da maior ou menor distância entre a lei e os comportamentos, uma aferição de desigualdades e conflitos emergentes e, portanto, da sua prevenção e, até, de justiça social. É, assim, uma forma de diminuição da frustrações e violência acumulada e uma via de apaziguamento social, redução do escalar de situações e diminuição de eventuais litígios em tribunal. A reclamação enquanto instituição, nas suas diversas variantes, é, assim, um indicador da saúde do sistema social.
Apesar disso, em Portugal não se dá uma grande importância à instituição da reclamação, quer a um nível institucional, quer a um nível académico. Ao nível académico, utilizando o termo ‘reclamação’ e ‘reclamações’ no RCAAP contam-se 62 teses de mestrado e 2 artigos científicos. Num varrimento rápido, podem-se constatar três falhas óbvias: 1) a ausência de uma verdadeira análise social científica sobre a instituição da reclamação; 2) decorrente da primeira falha, a elaboração de dissertações de mestrado como meros relatórios técnicos sendo a reclamação entendida sem problematização socio-cultural; 3) finalmente, tais relatórios centram-se quase a 100% em reclamações associadas ao cidadão-consumidor, não tendo ainda expressão científica uma atenção à reclamação social e institucional, cujos dados aliás são difíceis de colectar.
Cultura de compensação e cultura de infracção
Na actualidade, uma análise sociológica deve implicar, sempre que possível, uma prévia distância comparativa, ou seja, uma análise entre culturas ou antropológica. Ora, uma sociedade que é conhecida por uma ‘cultura de reclamação’ e, mais ainda, pela sua correlata ‘cultura de compensação’, é a dos Estados Unidos da América. A este complexo chama-se mesmo ‘comp culture’ e uma forte ‘comp culture’ leva porventura a uma conflitualidade demasiada e até a um efeito travão no crescimento económico em função da aversão ao risco das empresas,. No extremo oposto temos uma fraca cultura de reclamação e a sua correlata cultura de infracção. Ou seja, se a reclamação e a compensação não funcionam, abre-se espaço para a infracção em face do impoder de quem é lesado. O que proponho aqui é que devemos ter em conta esse continuo entre cultura de forte e fraca reclamação e de compensação vs infracção e que Portugal está neste outro extremo. Ora, se num extremo a ‘comp culture’ é um travão económico, a cultura de infracção, no outro extremo, também o é.
De facto, estas duas culturas de reclamação assentam em dois regimes de moralidade. A cultura de compensação baseia-se na premissa de que o sistema não é perfeito e, por isso, evidencia falhas continuas em que o individuo é lesado. A compensação é, assim, um mecanismo de regulação de falhas a posteriori. Já o que chamamos cultura de infracção baseia-se na premissa de que o sistema é o melhor possível e que as reclamações são ruídos por parte de indivíduos ignorantes ou perversos ou, paternalisticamente, simplesmente ‘chatos’, que o podem por em causa sem necessidade. Portanto, o primeiro regime é mais individualista e assente mais na responsabilidade/consciência de cada um enquanto reclamante e o segundo mais coletivista e legitimando a lealdade ao sistema e sua manutenção: ambos no seu extremo levam a disfunções graves nas instituições, conflitualidade social e são travões da economia.
Um Estado inepto e canais viciados
Feita esta análise prévia, interessa-nos o caso português. É muito provável que neste momento já possamos caracterizar uma história de reclamação em Portugal num tempo de democracia. Entenda-se aqui por reclamação, a capacidade de um individuo (e não de qualquer movimento político, sindical ou social) poder reclamar de uma situação em que considera ter saído prejudicado. Também convém dizer que a reclamação enquanto instituição social não é uma história dos institutos legais. Ou seja, a lei por vezes confere (formalmente) a capacidade de reclamar sem que tal se tenha transformado numa instituição social. Vejamos, pelos vistos o livro de registo de queixas, conhecido por ‘Livro de Reclamações’ tem a sua origem no Estado Novo e o Chatgpt até diz que, formalmente, com esse nome é uma criação portuguesa. E, no entanto, a sua utilização nessa época terá sido muito reduzida.
De forma exploratória, também em hipótese, proponho que uma primeira geração da reclamação enquanto instituição social terá surgido associada ao consumo. Talvez se possa conceber uma segunda geração associada às condições de trabalho, mas focadas na segurança e saúde no trabalho. No entanto, na última década, a reclamação social, relativa a situações de acesso ao e condições de trabalho, discriminação, racismo e xenofobia e outras têm aumentado. E, finalmente, estamos num momento de reclamação institucional em que concursos públicos, assédio e a corrupção são cada vez mais evidentes. Sendo isto confirmado, o que significa é que a cultura de infracção, não tendo tido qualquer travão se instalou claramente. Assim, se no caso do consumo se instituiu de forma clara uma cultura da reclamação (ainda que não necessariamente de compensação), nos demais casos (social e institucional) é apenas e só uma cultura de infracção que vigora, sufocando as vozes reclamantes. Tal significa claramente que o Estado funciona muito pior que o mercado, caso houvesse dúvidas no que quero dizer. E muito pior porque se o Estado não cumpre o papel de regulador social e institucional simplesmente não cumpre o seu papel. E é claro que estamos cientes que há 35 entidades reguladoras/fiscalizadoras aderentes ao Livro de Reclamações eletrónico mas que não é esse o canal para a reclamação social e institucional.
O que se passa então com a reclamação social e institucional? Porque é que ela está a falhar? Proponho também aqui que o administrativismo, associado ao juridiquês, é, mais uma vez, o principal responsável. Ele assenta, neste caso em particular, numa história fascista do país e numa inércia do regime moral da ‘queixa’ e da ‘denúncia’ por oposição à ‘reclamação’.
Por um lado, é por demais evidente a forma tardia e inepta pela qual o Estado está a lidar com os problemas da reclamação social e institucional. De facto, só está a lidar com estes problemas por obrigação internacional. No caso a directiva (UE) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União. Ou seja, não fora tal obrigação de transposição da diretiva europeia e continuávamos a procrastinar.
Apesar dos mecanismos de compliance e canais de denúncia terem surgido nos anos 70, em Portugal é só a partir de 2022, em função da entrada em vigor a 18 de junho da lei nº 93/2021 que se criam tais canais. Empresas e entidades públicas com mais de 50 trabalhadores tiveram de ter um plano de prevenção da corrupção e assédio, um código de conduta e um canal de denúncia. Em Portugal, o administrativismo é a regra e segue a cultura de infracção referida e o regime moral da lealdade: ou seja, implementa-se, claro, o que a lei diz, mas de forma a que tudo fique na mesma. Canais internos de denúncia criados por eventuais assediadores e corruptos (pois o assédio e a corrupção implica acesso ao poder), tendo em tal posto gente nomeada de confiança de quem detém o poder e que assume o papel de meros ‘administrativos’ (foi o que um disse) não podem deixar de ser percebidos por quem quer fazer as denúncias como ineficazes e não confiáveis. As vítimas têm de reclamar aos delegados dos seus próprios algozes! Acresce a isto que, num universo de mercado em que dominam as pequenas empresas, e num universo da administração pública dominado também por pequenas ‘casas’ com imensa autonomia em relação à gestão de recursos humanos, os ‘chatos’ estão mapeados há muito tempo e se não foram despedidos estão a ser geridos por processos disciplinares inventados ou/e na ‘prateleira’ pelo que o denunciante não está de facto defendido.
Os três regimes morais
Há, para além de tudo, uma história social da reclamação/queixa/denúncia que explica em parte a situação actual.
Referimos que o regime moral associado à nossa cultura de infracção parte da premissa da lealdade ao sistema como central. De facto, há uma conflitualidade entre uma moralidade da ‘queixa’, da ‘denúncia’ e da ‘reclamação’ que se evidencia na trapalhada jurídico-institucional dos canais de denúncia: a da lealdade em relação ao trabalho, a lealdade em relação à autoridade e a defesa dos direitos legais, políticos, sociais e culturais dos cidadãos.
A noção de ‘queixa’ associa-se a um universo linguístico de sentido que enfatiza a lealdade perante o trabalho (‘não sejas queixinhas’; ‘queixas-te de barriga cheia’; ‘trabalha mais e queixa-te menos’) que tem origem numa sociedade industrial e numa certa medicina do trabalho que distinguia entre preguiçosos e verdadeiros doentes/deficientes e que ainda hoje vigora nas Juntas Médicas.
Já a ‘denúncia’ está claramente associada ao Estado Novo, à polícia política e aos ‘bufos’ e enfatiza a lealdade perante a autoridade e que ainda vigora. È por isso que a confiança política é nas instituições, de forma descarada em alguns casos, a única legitimação para se aceder a cargos. A lógica ‘ou estás connosco ou contra nós’ que creio muitos conhecerão, evidencia que a denúncia continua a ser aceite grandemente para o poder saber quem é desleal. Em função desta cultura, os canais de denúncia não podem ser de todo confiáveis.
Assim, a ‘reclamação’ associada a um verdadeiro estado de direito, de ‘segurança humana’ do cidadão perante o Estado e seus delegados vários, não se conseguiu emancipar, infelizmente, dos nefastos legados históricos da ‘queixa’ e da ‘denúncia’ dos quais está refém.
Desprezo, transferência e apaziguamento
Em resultado de tudo isto, se o sistema de gestão da reclamação social e institucional é absurdo, também o são as estratégias de resposta a tais reclamações, quando, por pressão e mesmo conscientes de todas as perversidades, alguns de nós insistem em reclamar. O desprezo, a transferência e o apaziguamento parecem ser as três estratégias mais evidentes perante uma reclamação social ou institucional.
A não resposta dos superiores hierárquicos, dos ministérios e ou outras instituições a quem se reclama é algo com que se pode contar em Portugal. Por detrás há-de estar algum assessor jurídico que deve dizer ‘eles que vão para tribunal administrativo, se quiserem!’. É também isso que se ouve quando em órgãos colegiais se instala uma contenda: um delegado do poder instituído diz em juridiquês cordial: ‘- quem discorde pode sempre recorrer para tribunal administrativo’. A não resposta escrita ou a resposta oral indicada é como quem diz ‘-eles que vão à merda!’. Uma outra forma resposta possível (e até rápida) é, quando perante uma reclamação, mais uma vez algum cooptado jurista encontra alguma falha formal (‘A reclamação não cumpriu o prazo X ou o artº y) ou, o que é fácil, não encaixa a reclamação numa tipologia de ilícito ou ilegalidade, respondendo simplesmente ‘Não houve infracção’ ou ‘A situação descrita não pode ser entendida como assédio legalmente’ (substitua-se assédio por ‘discriminação’, ‘conflitos de interesses’, ‘parcialidade’ ou outra qualquer situação das tantas que há!). Pode ainda ocorrer, em situações demasiadamente óbvias em que o cidadão reclamante tem a razão mais do seu lado, uma resposta em formato ‘nim’: ou seja, diz-se que a lei pode de facto ser interpretada da forma como o cidadão a indica mas também pode ser interpretada de outra forma. Mais uma vez, se o cidadão tiver força para tal e disponibilidade financeira e tempo de vida que vá para tribunal.
A transferência é outra das estratégias. Há uma transferência absurda mas real que é a de reenviar a carta ou o email para a pessoa/serviço de quem estamos a reclamar, sendo uma denúncia do denunciante e uma colocação do mesmo sob retaliação óbvia. Não há protecção do denunciante que lhe valha (independentemente do que diga a directiva europeia). Uma outra transferência é responder ao cidadão, dizendo simplesmente que não é aquele o canal que deve usar para reclamar, não indicando outro. Finalmente, existe uma outra transferência que é a da indicação do serviço/órgão/canal que o cidadão deve usar. De todas as formas, trata-se de ‘sacudir a água do capote’!
Depois há as respostas de apaziguamento. Desde logo a carta a confirmar a entrada do processo e a indicar que está em tramitação. O cidadão reclamante acredita, por algum tempo, que afinal o sistema até funciona para, no final, em alguns casos, não ter mais resposta alguma. O ‘Portal da Queixa’, por exemplo, já foi denunciado nas redes sociais que actua dessa forma e eu confirmo que também já aconteceu comigo. Finalmente, quando vem uma resposta, as mais das vezes é do tipo não-resposta ou de arquivamento.
Em suma, em 57 anos de vida e vários de reclamante, tirando situações de consumo, nunca vi uma reclamação minha suficientemente analisada, quanto mais atendida ou compensada. Assim, a reclamação social ou institucional em Portugal é uma reclamação (im)possível! Talvez a União Europeia (ou o Estado Português) devesse não só transpor diretivas legalmente mas analisar os seus processos de tradução cultural de forma a não perdemos anos ou décadas em função de processos de faz de conta com graves consequências psicológicas, sociais e, claro, económicas!.