Corria o ano de 1939, ano de partida para a II Guerra Mundial, quando a Alemanha Nazi e a União Soviética assinam um importante acordo para a segurança e pretensões soviéticas na Europa do Leste, o acordo de não-agressão Molotov-Ribbentrop. Este pacto permitiu um entendimento entre alemães e soviéticos relativamente às suas esferas de influência na Europa, particularmente no Leste. Mais tarde viríamos a saber que neste acordo existia um protocolo secreto que dividia os territórios da Polónia, Lituânia, Estónia, Finlândia e Roménia, antecipando uma “reorganização territorial e política destes países”. Estava aberto o caminho para o Leste Europeu cair nas mãos de Estaline, que ficaria com uma influência alargada até metade do território polaco (onde se iniciaria o território de influencia nazi).
O acordo é muito relevante, porque seria o início da incorporação de muitos destes territórios na União Soviética, tornando-se repúblicas soviéticas e parte integrante da URSS. O que se passou de seguida é também muito importante para compreender a política externa e de segurança de muitos destes países relativamente à Rússia de hoje. Depois de 1940, Estaline implementou a chamada política de terra arrastada (destruição de tudo o que pode ser utilizado pelo inimigo), arrasando as regiões ocidentais da União Soviética, principalmente os bálticos. Foram mortas milhares de pessoas, incluindo mulheres e crianças, incendiaram-se aldeias, escolas e edifícios. Na Letónia, Estónia e Lituânia foram deportadas centenas de milhares de pessoas para campos de concentração na Sibéria, sob ordem direta de Moscovo. Prisioneiros políticos eram executados arbitrariamente. Na antiga colónia oriental da Polónia, os soviéticos deportaram cerca de 1,5 milhões de habitantes, entre os quais 7,4% eram judeus, acabando muitos por morrer na guerra. Pelo menos 320 mil prisioneiros de guerra polacos capturados pelo Exército Vermelho foram assassinados em 1939. A todos estes acontecimentos durante a grande guerra juntamos décadas de deportações para os famosos Gulags de pessoas dos territórios do Leste europeu. Foram vários os massacres durante a Guerra Fria, mas gostaria de deixar referido o Massacre da Revolução Húngara (1957), a invasão da Checoslováquia (1968) e o massacre de civis no Afeganistão (1980).
Estes acontecimentos não condenam a Rússia atual de Putin, mas condicionam a política externa de vários destes países, inclusive influenciam o seu conceito de segurança. Este conceito de segurança coletiva não é algo abstrato nem é algo politizado como podemos observar no Ocidente ou na Rússia. Essa é a razão por muitos destes países terem aderido à NATO (e/ou à União Europeia) no pós-queda do muro de Berlim. Todos estes países se voltaram para o Ocidente de livre vontade pelo receio da ameaça do poder russo. Mesmo enfraquecida depois da queda da URSS, a nova Federação Russa não teve as mesmas consequências que a Alemanha Nazi teve depois de 1945. A Rússia manteve o seu lugar como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (e o seu poder de veto), beneficiou de muito apoio financeiro e técnico do ocidente (principalmente dos EUA) e foi perfeitamente integrada no sistema internacional político e económico, não esquecendo os vários acordos como o NATO-Russia Founding Act em 1997, um acordo de cooperação na área de segurança envolvendo os países da NATO e a Rússia. Principalmente, a Rússia manteve o seu enorme poder militar e as suas ogivas nucleares. A Rússia continuava a ser a Rússia para os países europeus que sofreram tragédias às mãos dos soviéticos durante grande parte do Séc. XX. Essa tragédia foi vivida por gerações ainda vivas nesses países, muitos deles hoje decisores políticos e da alta esfera dessas sociedades. Por seu lado, a Alemanha do pós-Guerra já não seria a mesma Alemanha do regime nazi, tendo sido desmembrada em várias áreas de influência e a sua capacidade militar reduzida a quase nada. A memória de países que sofreram às mãos dos nazis era de um país que já não existia.
É inegável que os EUA perderam uma real oportunidade no final da Guerra Fria para criar um laço de segurança na Europa, que englobasse a Rússia. Mas a verdade é que foram descuidados principalmente depois da presidência de George Bush (pai), quando iniciaram uma série de operações no Leste europeu sem a devida coordenação com os russos. A intervenção da NATO no Kosovo em 1999 representou o primeiro conflito entre EUA e Rússia no Pós-Guerra fria, criando as bases negativas para o discurso emblemático de Putin em 2007, sobre a presença e atuação da NATO junto das fronteiras russas.
Todavia, algo tem falhado em algumas discussões sobre o problema da Ucrânia, Rússia e restantes países de leste, que é perceber como funciona a adesão à NATO (e mesmo à UE). É preciso primeiramente admitir que existem interesses dos EUA na região. O sistema internacional move-se por interesses específicos, mas essa abordagem realista não muda o facto de a suposta expansão da NATO ser uma circunstância geopolítica referente às escolhas dos antigos países do bloco soviético, e não uma anexação ou influência forçada de uma força exterior. Estas adesões à NATO são resultado de fatores múltiplos e complexos e não exclusivos de um projeto hegemónico dos EUA. Esse projeto funciona apenas como mais um fator. A diferença fundamental em toda esta história é que houve intenção clara dos países do Leste europeu em aderir à NATO, considerando os fatores históricos e também ideológicos. Não foi apenas a memória trágica destes países, era também a intenção de se juntarem à prosperidade económica do ocidente e aos benefícios de uma democracia liberal, algo que não tinham experimentado sob o regime soviético. Foi uma mistura de ressentimento e desejo por uma vida melhor.
Na Ucrânia, principalmente após a Revolução de Maidan, o sentimento é precisamente o mesmo. Após a intenção clara do povo ucraniano em aderir à UE, Putin interveio. O presidente ucraniano Yanukovych, depois de ter bloqueado essa intenção de adesão sob pressão de Putin, provocou manifestações populares nas ruas que deram origem a Maidan (sendo que Yanukovych fugiu, posteriormente, para a Rússia). Tudo o que se seguiu depois já sabemos (intervenção russa na Crimeia e Donbass). Do ponto de vista do idealismo, o que observamos é um choque de dois valores incompatíveis. Um desses valores ameaça diretamente o poder de Putin em Moscovo, algo com que o Presidente russo já vinha a lidar desde o aparecimento de oposições (como Navalny) ou as grandes manifestações democráticas de Moscovo em 2017. A ideia da liberdade de expressão e a implementação de uma democracia liberal, a separação de poderes, é algo que assusta o aparelho de Putin e todos os que se alimentam dele. É também uma ameaça engrandecida pelos agravados problemas económicos da Rússia, que começam a ser evidentes precisamente numa altura em que Putin se torna mais interventivo no que toca às suas fronteiras, não se tratado de uma simples coincidência. É uma ameaça russos ou ucranianos poderem observar de perto a prosperidade e o estilo de vida de populações de antigas repúblicas soviéticas que aderiram à UE ou à esfera de influência do ocidente. Mais do que a memória trágica na Ucrânia, que existe (grande fome de Holodomor, deportação estalinista de 200 000 tártaros na Crimeia, os gulags da Ucrânia, entre outros), a principal motivação dos ucranianos será a liberdade e melhor qualidade de vida, e é essa a intenção que devemos respeitar. É principalmente por isso que a realidade geopolítica deverá contar menos nesta questão, porque é do idealismo europeu que falamos e para o qual os ucranianos estão a morrer, mesmo ainda não pertencendo às organizações que pretendem pertencer.
Existem ameaças neste conflito, como o crescimento da extrema-direita no seio da Ucrânia, mas é um erro centrarmos a questão nesse facto. Esse é apenas mais um fator num misto complexo dentro de uma questão maior, a questão do idealismo. Devemos pois saber separar a liberdade de escolha dos ucranianos de anexações forçadas dos russos. A NATO é uma organização na qual os países se candidatam ou são convidados. Os ucranianos não aderiram a Putin, foi este que escolheu querer a Ucrânia, e esta não teve qualquer capacidade de escolha nesse processo. Se o povo ucraniano quiser, pode desejar não entrar na NATO ou UE, é uma escolha. E não é na liberdade de escolha que todo o nosso estilo de vida se centra?