Em 2020 ocorreram, entre outras, duas efemérides: os 80 anos da Concordata entre Portugal e a Santa Sé e os 50 anos da morte de António de Oliveira Salazar. Não obstante o meio século decorrido, ainda é cedo para fazer uma análise objectiva sobre a relação entre o ex-seminarista viseense e a Igreja católica, porque a pessoa e a obra do ex-governante continuam a suscitar reações apaixonadas. Mas, qualquer que venha a ser o veredicto da História, é já possível afirmar que a ligação de Salazar à Igreja não foi linear.

A Concordata entre Portugal e a Santa Sé foi assinada a 7-5-1940, em pleno Estado Novo. Este tratado internacional – o Vaticano foi reconhecido, em 11-2-1929, pelos Pactos de Latrão, como Estado soberano, sucessor dos Estados pontifícios – surge no seguimento desse pacto com o regime fascista, de Benito Mussolini, e a Concordata com o governo nazi, de Adolf Hitler (20-7-1933). Não se pense, contudo, que as Concordatas com a Itália fascista, a Alemanha nazi e o Portugal do Estado Novo, expressam uma especial simpatia da Santa Sé por estes regimes. Muito pelo contrário.

São dessa altura três importantes encíclicas papais, que têm um denominador comum: a defesa da liberdade contra o totalitarismo. A encíclica Divinis Redemptoris, de 19-3-1937, condena o comunismo, enquanto Mit Brennender Sorge, do dia 14 do mesmo mês e ano, denuncia a ideologia nacional-socialista germânica, razão pela qual foi redigida em alemão, como a encíclica Non abbiamo bisogno, de 29-6-1931, o tinha sido em italiano, porque nela se critica o fascismo italiano. É significativo que os dois grandes totalitarismos do século XX – o nazismo e o comunismo – tenham sido condenados pela Igreja católica com apenas cinco dias de diferença.

Os factos confirmaram o carácter profundamente anticristão destas três ideologias totalitárias. O comunismo soviético exterminou a Igreja católica na Rússia, obrigando os seus fiéis a ingressarem na igreja ortodoxa. O fascismo italiano perseguiu os católicos: o Papa São Paulo VI, então Mons. Montini, sofreu na pele a intolerância dos sequazes de Mussolini. O nacional-socialismo alemão fez dos cristãos, sobretudo dos católicos, bem como dos judeus, os seus principais inimigos.

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Nestas três magistrais encíclicas do Papa Pio XI nota-se a influência do seu Secretário de Estado, o Cardeal Eugénio Pacelli, que lhe sucederá, como Pio XII, na cátedra petrina. Pacelli foi durante vários anos núncio apostólico na Alemanha de Hitler e, por isso, não tinha quaisquer dúvidas quanto à intrínseca perversidade do nazismo, não obstante as simpatias de quem via no nacional-socialismo a salvação contra o comunismo soviético e internacional. A historiografia marxista tentou, já depois da morte de Pio XII, culpabilizá-lo pela sua alegada condescendência com o nacional-socialismo, acusando-o de um ‘ensurdecedor silêncio’ que, na verdade, nunca existiu. Se o Papa Pacelli evitou declarações públicas mais contundentes, foi porque seriam inúteis e desencadeariam retaliações nazis, como a que aconteceu depois da condenação do nazismo pelo episcopado holandês. Mas, muito antes de ser Papa, já tinha uma profunda aversão pela ideologia de Hitler, o qual, aliás, também não escondia a sua antipatia por Pacelli.

A este propósito, é muito curioso o que Bruno Cardoso Reis, na sua obra sobre Salazar e o Vaticano (Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa 2006), relata de uma conversa entre o futuro Pio XII, na altura ainda Secretário de Estado, e o representante português na Santa Sé, Vasco de Quevedo, de quem constava alguma admiração pelo regime nacional socialista. “Da maior relevância é a reacção claramente antinazi de Pacelli à crítica de Quevedo em relação às posições críticas do Vaticano e de alguns bispos face a determinadas correntes nacionalistas filonazis”.

Muito antes de se iniciar a segunda Guerra Mundial e de se conhecerem os horrores dos campos de concentração – onde foram martirizados, entre muitos outros, o franciscano São Maximiliano Maria Kolbe e a carmelita Santa Teresa Benedita da Cruz – já Pio XII expressava, ao embaixador português, o seu total repúdio pelo nacional socialismo germânico: “A Igreja não pode aplaudir qualquer orientação política que se pareça com o nazismo! Veja, Excelência, o que se passa na Alemanha: além de serem negados aos católicos as liberdades mais elementares […], a imprensa alemã fez uma campanha […] contra a Igreja, campanha inqualificável, odiosa e selvagem! Não pode calcular […] até que ponto vai a perseguição que se faz, neste momento, aos católicos e à Igreja”. “Perante a objecção de Quevedo de que na Alemanha as igrejas permaneciam abertas, enquanto o clero era morto e torturado na Rússia, Pacelli replicou: Sim, diz o cardeal interrompendo-me, mas o nazismo, não matando nem incendiando, consegue o mesmo resultado, porque acaba com a Igreja e a religião”.

A atitude de Pacelli já então era de manifesto repúdio não apenas do nacional-socialismo germânico, mas também de algum nacionalismo espanhol, não obstante o sentido de cruzada de que fazia gala o exército de Franco: “se nós sabemos que entre os nacionalistas espanhóis há gente de primeira ordem, também não ignoramos que, entre os legionários, há muitos de tendências nazistas, gente inconveniente e perturbadora”.

É sabido que o processo negocial que antecedeu a assinatura da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, em 1940, foi lento e difícil, precisamente por causa destes antecedentes. Como escreveu Bruno Cardoso Reis, “é particularmente interessante Salazar mostrar-se ofendido com as alusões do núncio ao facto de que a má experiência com o regime nazi tinha tornado os prelados vaticanos muito cautelosos. Ele considerava a comparação disparatada e ofensiva”.

É verdade que o regime autoritário do Estado Novo divergia do fascismo italiano e, mais ainda, do nazismo germânico. Salazar, que foi seminarista e esteve prestes a ser ordenado padre, era católico e amigo próximo de uma figura proeminente da Igreja portuguesa no século XX: o Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, Patriarca de Lisboa, de quem foi colega quando ambos eram professores na Universidade de Coimbra.

Apesar de católico, Salazar nunca permitiu que a sua fé interferisse na intransigente defesa do que entendia ser o interesse nacional, nem favoreceu a Igreja. Com efeito, “uma característica fundamental da personalidade e postura política de Salazar” era “a sua rigidez na defesa do seu entendimento dos interesses do Estado”. Neste sentido, a Concordata de 1940 foi o compromisso possível, mas não o desejável para a Igreja. Como afirma Cardoso Reis, “na diplomacia da Santa Sé, as dificuldades na negociação da Concordata firmaram a ideia de Salazar como sendo na prática muito político e pouco católico”.

A relação tensa entre o Estado Novo e a Igreja católica agravou-se com o Concílio Vaticano II e, entre outros, o caso do Bispo do Porto, em 1958. A abertura proclamada pelo concílio não podia, obviamente, ser vista com apreço por um regime que insistia em manter-se autoritário e avesso a qualquer reforma. Também a nível internacional, era cada vez maior o desfasamento de Portugal, isolado na sua teimosa pretensão de não reconhecer o direito à independência das suas províncias ultramarinas, muitos anos depois de as potências europeias terem concedido a autodeterminação às suas colónias africanas.

Compreende-se assim que Salazar não tenha escondido o seu desagrado pela visita, em 1964, de Paulo VI a Bombaim, poucos anos depois da anexação de Goa, Damão e Diu, o chamado Estado português da Índia. Também causaria grande irritação ao regime, embora nessa altura Salazar já não fosse presidente do Conselho de Ministros, a audiência concedida, em Julho de 1970, por Paulo VI, aos representantes dos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Foi, portanto, num momento de crispação nas relações entre Portugal e a Santa Sé que se deu, em Maio de 1967, a brevíssima visita apostólica de São Paulo VI à Cova da Iria, no cinquentenário das aparições marianas. O Papa não quis dar carácter de visita de Estado a esta sua deslocação e, por isso, nem sequer passou por Lisboa, reduzindo a sua presença a Fátima, onde esteve aproximadamente 24 horas.

Temia-se que Salazar, que não simpatizava com Paulo VI, não fosse recebê-lo a Monte Real, até porque, sendo o Papa o Chefe do Estado da Cidade do Vaticano, seria protocolarmente suficiente a presença do seu homólogo português, o Presidente da República, Américo Tomás. Mas o velho professor de Coimbra, fazendo das tripas coração, foi pessoalmente receber Paulo VI. Citando Franco Nogueira (Salazar, vol. VI, pág. 288), Bruno Cardoso Reis narra um inverosímil episódio, que foi “contado pelo próprio fundador do Estado Novo aos seus ministros, ‘rindo com sabor’. Naturalmente” – teria dito então Salazar – “tratei o pontífice por Vossa Santidade. Sabem como me tratou o Santo Padre? Chamou-me Vossa Eternidade”!

Não é razoável supor que, de facto, assim tenha acontecido, porque o Papa Montini, ao contrário do seu predecessor, o jovial São João XXIII, não era pessoa para fazer um aparte destes, muito menos com um chefe de governo que nunca tinha visto e com o qual a Santa Sé tinha então relações tensas. Não sendo crível que Paulo VI tenha tratado Salazar por Vossa Eternidade, nem que Franco Nogueira tenha inventado esta história, talvez tudo se tenha ficado a dever a uma graça do próprio ditador, o que explicaria que o tivesse feito “rindo com sabor”. Caso para dizer, se non è vero, è ben trovato!