De entre as medidas de sucesso que o nosso governo implementou para nos proteger da pestilência que presentemente grassa em Espanha, está uma tracking app portuguesa, desenvolvida com dinheiros públicos provenientes da doação entusiástica que os trabalhadores por conta de outrem residentes no continente fizeram através de outra app vitoriosa: a sucking app vulgarmente conhecida como IRS. No entanto, o sucesso da aplicação móvel de rastreio stayaway covid em fazer com que a pandemia não atravesse a raia, não é único na história da humanidade. Temos o exemplo de outras tracking apps que, no passado, também foram instrumentais na eliminação de outras pestilências. De facto, pode-se ler num manuscrito antigo, pincelado a tinta-da-china por mão japonesa, a seguinte crónica:

“Pouco depois de Genroku-gimi ter sido entronado Xogum sob o nome de Tokugawa Yoshimune [徳川吉宗, 1684—1751], de feliz memória, este elevou Ōoka Tadasuke [大岡忠相, 1677—1752] a machi-bugyō da capital xogunal, com jurisdição sobre causas civis e criminais, com poder de vida e de morte. Como é comum acontecer nestas circunstâncias, alguns colegas de magistratura melindraram-se com a rapidez da progressão de Ōoka, ressentiram-se com sua fama e invejaram a amizade que o novo Xogum lhe nutria e, desejando subtrair algo à estima que Yoshimune lhe tinha, confabularam sobre como o menorizar aos seus olhos.

“Como nessa época Edo enxameava de corta-mangas e hábeis-de-dedos, os invejosos disseram entre si: ‘Ora aqui está uma praga que, se lhe for pedida sua extirpação, tornará patente a sua incompetência e o lançará no descrédito, pois o carteirista é uma instituição apenas inferior à da cortesã em antiguidade e resiliência à reforma moral que mestres religiosos e filósofos clamam desde a mais alta antiguidade, e não há organização social ou repressão policial que possa livrar a humanidade destas duas chagas, nem a cidade xogunal destas duas pragas.’

“Assim foi formada uma comissão que elaborou o seguinte memorial dirigido ao Xogum:

Ao único e altíssimo representante do Supremo Altíssimo:

Edo, sendo a mais extensa e populosa metrópole deste vasto Império da Libelinha, é o epicentro e ponto de encontro de todo o tipo de malfeitores e celerados. De entre estes, os mais pestilentes, inoportunos e incómodos são os membros da corporação dos carteiristas, de cujas depredações sofrem diariamente as mangas dos honestos cidadãos. Ultimamente o seu número tem-se multiplicado exponencialmente e a sua audácia e sem-vergonha não está sujeita a qualquer limite, o que anula a vigilância dos Vossos oficiais, torna vã todos os seus esforços de prevenção e nulifica as medidas de contenção da criminalidade, de tal modo que dia a dia aumenta a desmotivação das forças de segurança e diminui o seu brio. Assim, Vos pedimos que encarregais ao mais sábio e prudente dos Vossos magistrados a erradicação desta execranda fraternidade de modo a imunizar esta grande cidade da referida moléstia.

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“Elevado submissamente à condescendência mais elevada.

“Este memorial foi entregue, seguindo o protocolo estabelecido, na Chancelaria dos Ritos e Cerimónias, escoltado por um presente em ouro destinado ao Chanceler, para assim melhor assegurar a sua favorável transmissão ao Xogum, e acompanhado da esperança de que Ōoka fosse incumbido desta missão impossível.

“Depois de seguir os tramites instituídos o memorial foi apresentado ao Xogum que, surpreso perguntou: ‘É a situação assim tão intolerável que o povo tenha de me peticionar?’ E mandou vir Ōoka à Sua Presença.

“Quando este se compareceu à Presença, Yoshimune entregando-lhe o memorial perguntou-lhe: ‘Que cura pode haver para esta praga?’

“Respondeu o machi-bugyō: ‘A pena estabelecida para estes crimes não dissuade a malfeitoria. Se de cada vez que o dedo de um carteirista entrasse em manga alheia o seu pescoço arriscasse ser atravessado pela espada do carrasco, poucos seriam aqueles que ousam praticar este comércio.’

“Contrapôs o Xogum: ‘Não posso ordenar que se corte a cabeça a um homem pelo furto de dois bu.’

“Retorquiu Ōoka Tadasuke: ‘Pode ser que consiga encontrar cura para esta chaga se me deres completa descrição no seu tratamento.’

“Yoshimune disse-lhe para que procedesse como achasse melhor, mesmo que para a supressão dessa pandemia fosse necessário utilizar remédios extremos, como o seccionar o pescoço dos meliantes.

“Ōoka não perdeu tempo a passar à ação e ordenou que fosse afixada em todos os cruzamentos e à entrado dos templos existentes por toda a extensão da cidade a seguinte proclamação:

A todos os carteiristas de Edo

Tendo sido chamada a atenção do governo xogunal que alguns membros da vossa ordem profissional operam sem o pagamento dos impostos estabelecidos, é por este meio decretado que:

“1. Todo o carteirista que deseje prosseguir com a sua profissão na cidade xogunal deverá a partir de agora ter sempre consigo a licença oficial, por cuja emissão deverá arrecadar no Tesouro a quantia de três bu anualmente. A posse dessa licença será garantia e atestado de que está permitido e legitimado de exercer a sua atividade profissional sem impedimento ou constrangimento e de que nenhuma pena, multa ou coima, lhe será aplicada.

“2. Mas se algum carteirista for apanhado em flagrante a exercer a sua atividade sem ser portador da licença mencionada no número anterior será condenado a ser decapitado e a sua cabeça a ser exposta na praça pública como aviso para todos os que se sintam tentados a exercer esta atividade sem estarem devidamente licenciados.

“3. A solicitação das licenças mencionadas no n.º 1 deve ser feita no terceiro dia do próximo mês no edifício do tribunal desta cidade.

“Que seja dado conhecimento desta determinação a todos os residentes de Edo.

“Ōoka Tadasuke, machi-bugyō

“Quando leram esta proclamação, as gentes de Edo abriram a boca de espanto como melancias bem maduras, e a novidade deste novo regulamento foi falada e comentada por todos.

“Um dos amigos de Ōoka procurou-o e perguntou-lhe: ‘Qual o significado desta proclamação de que todos falam? Certamente sabeis que a atividade dos corta-mangas nunca foi tributada.’

Ao que Ōoka lhe respondeu: ‘A sério? Está então na altura de o passar a ser. Pois é uma atividade não só antiga, mas também aquela que de entre todas apenas atrai os hábeis e afoitos, pois requer rapidez no olho e dexteridade na mão, sentido de oportunidade e capacidade para avaliar o interior pelo exterior. Por outro lado, aqueles que incautamente deixam que terceiros esvaziem as suas mangas apenas sofrem o castigo que merecem por seu descuido e inatenção, sendo deste modo instruídos para se tornarem mais atentos e a estarem alerta, o que certamente beneficia toda a sociedade, uma externalidade social positiva de uma atividade privada lucrativa. Para além de tudo isto, é evidente que leis e regulamentos, injunções morais e castigos eternos, bem como fiscalização e policiamento se mostraram até agora incapazes de eliminar esta atividade, pelo que será prudente e judicioso reconhecer a sua existência, regulamentando-a e taxando-a.’

“Engasgado com a lógica deste argumento o amigo foi-se, e com a sua tosse espalhou a jurisprudência do machi-bugyō, contagiando quem encontrava, de modo que durante muitos dias ela foi discutida ao pequeno-almoço em família, durante o dia pelos transportadores de liteiras e à noite nos banhos públicos.

“Devido a tudo isto, a proclamação de Ōoka não passou desapercebida aos membros da corporação. Assim, o bastonário da Ordem dos Carteiristas convocou uma reunião do seu conselho de ética para consultas e para estabelecer uma recomendação a todos os associados. Quando o conclave se reuniu ficou patente a profunda diferença de opiniões entre os profissionais do ramo.

“Diziam uns: ‘Este Ōoka, que ele possa ser amaldiçoado e atormentado por todas as divindades maléficas!, não pretende mais que reunir-nos a todos no edifício do tribunal para nos prender e condenar como gatunos confessos.’

“Outros contrapunham: ‘Não, o novo machi-bugyō mais não está que a reconhecer a contribuição da nossa atividade para a justiça social e o seu contributo para a economia local, e mais não pretende que regulá-la e tributá-la tal como o governo já fez com a atividade das cortesãs.’

“Depois de ambos os campos argumentarem longamente a melhor linha de ação, o bastonário pronunciou-se e transmitiu o seguinte julgamento e decisão: ‘Não seria condizente com a dignidade do seu cargo que o machi-bugyō tentasse empregar um ardil tão infantil para nos prender, e seria uma vergonha para toda a Monarchia que tão alto e digníssimo magistrado fizesse uma proclamação que fosse a face de uma peta, que o ferraria, não só a ele mas a todo o regime imperial sob o qual temos a dita de florescer, como um oceano de hipocrisia e uma montanha de mendácia. Para além de que, a nossa presença no edifício do tribunal no dia determinado para fazer o requerimento estabelecido não constitui admissão de culpa passada, da qual o machi-bugyō não tem qualquer evidência incriminadora, nem de culpa futura, pois ninguém pode ser acusado de atos ainda não cometidos, apenas demonstra a nossa conscienciosa submissão aos regulamentos governamentais. Por outro lado, se as autoridades pretendem agora legitimar e legalizar a nossa antiga e honesta profissão, não devemos perder tempo em obter as licenças oficiais, as quais certamente valem bem a taxa anual de três bu que lhes está associada.’

“A decisão do bastonário pareceu assisada a todos os membros da Ordem, de modo que, no dia determinado, todos compareceram no edifício do tribunal, mais de seiscentos tratantes, para solicitarem as suas licenças e abrir atividade. Os funcionários iam recebendo os requerimentos, escritos e assinados de acordo com a minuta afixada na parede do site, e registando o nome, apelido e morada de cada um, bem como cobrando a taxa de três bu e recolhendo o seguinte impresso devidamente assinado e estampado com o selo pessoal de cada requerente:

Serve este documento de testemunho de que me comprometo solenemente, durante a validade desta licença, a exercer a minha atividade sempre munido da carteira oficial de carteirista que hoje me é passada e, caso seja apanhado no seu exercício sem a ter comigo, a não objetar que me seja imposta qualquer pena, incluindo a mais extrema.

“Data, nome, assinatura e selo

“Quando terminou o registo de todos os presentes e recebida esta declaração assinada e estampada por cada um, o oficial de dia ordenou que as licenças fossem trazidas e distribuídas. Estas estavam impressas em tábuas de pinho, de dois metros de altura por meio de largura, laqueadas a preto com letras a vermelho com os dizeres ‘Carteirista legalmente encartado’.

“Assim que os meliantes viram estas monstruosidades, percebendo que carregar este documento oficial à luz do dia seria tornar o portador tão conspícuo como um demónio de quatro cabeças, e recordando-se do compromisso que tinham acabado de assinar, perceberam que ao tentar endireitar o chifre tinham morto o boi, e ficaram tão lívidos como cabeças de alface. Nenhum deles esperou que que as licenças fossem distribuídas e, ou mudaram de atividade, ou emigraram para outras províncias, de modo que, desde então esta grande cidade se viu livre do seu convívio.”

Fazem-se votos que a tracking app high-tech do nosso governo consiga ser ainda mais eficaz na eliminação da pandemia que a tracking app low-tech de pinho de Ōoka Tadasuke em livrar Edo do vírus do carteirismo.

U avtor não segve a graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein a do antygo. Escreue coumu qver & lhe apetece. #EncuantoNusDeixam