Um cronista japónico do século 18, que permanece anónimo, pincelou sobre washi o seguinte relato, cujo valor permanece atual:

“Tokugawa Mitsusada [徳川光貞, 1627—1705], o Daimio de Kii e parente próximo de Tokugawa Ienobu [徳川家宣, 1662—1712], o sexto Xogum, tinha um filho que, apreciado com coração de pai, era enérgico e voluntarioso, determinado e vigoroso, corajoso e veemente. No entanto, avaliado com olhos de vassalo ou de ministro, era visto como turbulento e indomável, desordeiro e orgulhoso, dificilmente aceitando freio ou restrição e não acatando lei ou regulamento. No entanto, todos concordavam que tinha um excelente coração e uma boa cabeça. Este jovem, de seu nome Genroku-gimi, era um viciado na pesca. Sempre que era dominado pelo humor que o predispunha para a captura de animais escamados, arrebanhava os companheiros e, atravessando a fronteira do domínio de seu pai com a província de Ise, ia pilhar os lagos e lagoas do Venerável Santuário, o que era completa e estritamente proibido por preceito divino e lei humana. No entanto, sendo o jovem fidalgo tão grande Senhor e, para mais, parente próximo do Xogum, os sacerdotes e oficiais e guardas temiam e coibiam-se de apresentar queixa, mesmo que fundamentada e justa, e as autoridades de Ise assistiam impotentes ao abuso.

“Assim que Ōoka Tadasuke [大岡忠相, 1677—1752] foi, na sua juventude, nomeado magistrado em Yamada, e tomou conhecimento das ofensas frequentes e repetidas do jovem, convocou os seus oficiais e disse-lhes: ‘É proibido por lei que alguém atire linha ou lance rede dentro dos limites do Santuário. No futuro, tomai cuidado, e se virdes que alguém desrespeita a lei, mesmo que seja o próprio Xogum, apanhai-o e trazei-mo para eu o julgar. E nada temais, porque toda a responsabilidade recai unicamente sobre a minha cabeça.’

“E assim sucedeu um dia que os guardas, apanhando Genroku-gimi e os seus companheiros a pescar nos lençóis de água sagrados, os prenderam a todos e os levaram à presença de Ōoka. Este, olhando-os com ar severo, indagou: ‘Quem sois vós que desprezais as leis do Império?’

“Um dos camaradas de Genroku-gimi retorquiu insolentemente: ‘Ouve bem, ó senhor juiz! Os teus lacaios com o cérebro entorpecido não conseguem distinguir nobreza e posição e poder, mas tu saberás implorar desculpa e fazer reparações quando eu te disser que aquele em quem eles se atreveram a pôr as suas miseráveis mãos e manietar não é outro senão o filho do Honorável Senhor de Kii.’

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“Ao ouvir isto, Ōoka olhou para o cabecilha e Genroku-gimi confirmou: ‘É essa a verdade.’

“Imediatamente Ōoka riu-se em voz alta e disse: ‘É verdade que aparentais alguma semelhança com o jovem príncipe que alegais ser, mas eu sei que és um mentiroso, fingido e impostor. O nosso Senhor Mitsusada é um Senhor valoroso e justo, e o seu filho é predestinado a nobres feitos e destinado a altos cargos. É impossível que o filho e herdeiro de tal homem possa ignorar ou esquecer o que está estabelecido por costume e regulamentado por lei, mesmo em assuntos tão frívolos como os que respeitam ao divertimento. Registo essa tua afirmação como artimanha para obter a liberdade através de intimidação e declaro-vos culpado pelos dois crimes de pesca furtiva e falsa declaração. Ficareis sob custódia até eu decidir a pena a aplicar.’

“Foram assim todos postos na prisão da cidade, onde os jovens amigos de Genroku-gimi passaram o tempo maldizendo a estupidez do procurador, zombando da sua ignorância e conjurando, com arrepios de prazer, visões da punição horrenda e medonha que lhe estava destinada, quando chegasse aos ouvidos do Daimio de Kii o tratamento ignominioso a que o seu filho, descendente e herdeiro tinha sido submetido. Entretanto, o jovem Genroku-gimi estava sentado silencioso a um canto da cela, enterrando as unhas na carne, como se estivesse consumido de raiva, mas sentindo antes o picar da vergonha.

“Por fim, tendo decorrido o tempo suficiente para as paixões se acalmarem, Ōoka ordenou que a companhia fosse trazida outra vez à sua presença, e disse-lhes: ‘Considerei o vosso caso e, dado que é a primeira vez que o vosso delito me foi comunicado, remito a pena que vos é devida por pesca clandestina em local sagrado. O crime de roubo de identidade é, no entanto, mais grave. Não tenho qualquer dúvida de que, se o verdadeiro filho do Senhor de Kii tomasse conhecimento de que alguém, apanhado em flagrante no desrespeito pela lei da nação, tentasse eximir-se da pena que lhe era devida usurpando a sua honorável identidade, vós serieis todos, no mínimo, decapitados. Assim sendo, condeno-vos, cada um, a pagar um ryōem ouro.’

“Quando ouviram isto, todos os do bando, exceto Genroku-gimi, irromperam em exprobração irritada e furiosa, mas este fê-los calar e, fazendo uma vénia respeitosa ao magistrado, retirou da manga do seu quimono a bolsa e pagou a multa por todos.

“Conta-se ainda que, sendo no fundo um jovem de bom senso, Genroku-gimi não tornou às práticas ilícitas a que antes se tinha abandonado mas, pelo contrário, reformando o seu comportamento, dedicou-se ao treino das artes marciais e literárias e, mais importante, guardou na memória este episódio. Quando o número dos dias do Xogum Ienobu chegaram ao seu limite e este se mudou de mundo, e o seu filho e único descendente faleceu ainda criança e sem sucessor direto, coube por direito e mérito que o jovem príncipe fosse feito Xogum, o oitavo dos Tokugawa, conhecido por Yoshimune [徳川吉宗, 1684—1751], de feliz memória. Como este ainda se recordava do bugyōde Yamada, que se tinha atrevido a reprimir a sua insubordinação como jardineiro cuidadoso que endireita um bambu que nasce torto, mandou chamar Ōoka a Edo e nomeou-o machi-bugyō na cidade de Edo, com jurisdição sobre causas civis e criminais, com poder de vida e de morte.”

Se Yoshimune fosse hoje Xogum em Portugal, que pessoa escolheria para Procurador Geral? Certamente seria alguém com respeito pela lei e justiça, e sem respeito pelo dinheiro e poder. E que fosse capaz de o por na ordem, quando necessário. Será que os nossos xoguns são capazes de algo semelhante?