Garret Hardin escreveu um artigo famoso em 1968, há precisamente 50 anos, na revista Science, intitulado “A tragédia dos comuns” sobre o modo de administração de certos recursos considerados finitos quando o acesso é livre e a procura se processa sem condições que impeçam a sua sobre-exploração. Posteriormente, vários autores revisitaram a obra de Hardin, entre os quais a Prémio Nobel da Economia Elinor Ostrom, tendo concluído que mesmo indivíduos egoístas irão encontrar uma qualquer forma de cooperação, se essa for solução mais conveniente aos seus interesses. Assim sendo, esses autores deduziram que em vez da “tragédia dos comuns” deveríamos, talvez, falar da “tragédia do fracasso dos comuns”.

Esta referência histórica parece-me importante para o propósito que aqui trago acerca do futuro próximo da União Europeia, seja sobre aqueles bens que hoje já são bens comuns europeus (o mercado único, o comércio global ou a moeda única, sobre os quais pode recair a tragédia dos comuns) ou sobre aqueles “recursos” que ainda hoje não são bens comuns europeus (a defesa comum, a política comum de imigração, a mutualização dos grandes riscos e sobre os quais pode recair a tragédia do fracasso dos comuns). Evidentemente, a transposição destas teses para o plano europeu não é simples ou linear nem eu desejo ser uma ave agoirenta a poucos meses das eleições mais importantes para o Parlamento Europeu em maio de 2019.

E para demonstrar que não desejo ser essa ave de mau augúrio, trago ao conhecimento dos leitores uma síntese daquilo que eu próprio escrevi em 2012 (Dez teses sobre a Europa Federal, Universidade do Algarve), em 2013 (Os bens comuns da futura federação europeia, Edições Colibri) e 2016 (A contingência europeia, Editora Sílabo). Contra o populismo europeu e os nacionalismos autoritários, insisto na proposta de uma união política europeia assente num “cabaz” de bens comuns europeus. Não é uma tarefa nada fácil, a liderança política europeia está muito fragilizada, por isso alguns dos comuns aqui propostos poderão conduzir a uma “tragédia do fracasso dos comuns”.

1. Os bens comuns da União Política Europeia

A minha insistência numa união política de natureza federal não resulta de obstinação pessoal, mas, antes, de sinais preocupantes em matéria de regressão do comércio global, do multilateralismo, da geopolítica mundial e regional e, mesmo, de regressão democrática. A preservação de um bloco europeu politicamente integrado é a única solução para um país pequeno como o nosso nesse mundo muito conturbado que nos espera. Por isso, na minha teoria do federalismo cooperativo, partilhado e descentralizado, que eu proponho para a união política europeia, cabe um “pacote de bens comuns”, alinhados de acordo com o princípio de que “o todo é maior que a soma das partes”:

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  1. Soberania partilhada e federalismo cooperativo
  2. Mais cidadania europeia, uma procuradoria europeia
  3. Modelo social europeu e sociedade civil europeia
  4. Um orçamento federal para a zona euro
  5. Uma reserva federal ao serviço da união política europeia
  6. Um fundo monetário europeu e uma agência para a gestão da dívida
  7. Um mecanismo europeu de cobertura de grandes riscos
  8. Uma doutrina regionalista europeia para a política de coesão territorial
  9. Uma PESC para a união política europeia
  10. O Mare Nostrum, um Plano Delors para a União do Mediterrâneo

E porquê uma teoria dos bens comuns para a união política europeia?

As principais linhas de fratura que atravessam a União Europeia, hoje e no futuro próximo, permitem que façamos a associação entre riscos globais e tragédia dos comuns. Neste sentido, o combate aos grandes riscos, do risco humanitário ao risco climático, do risco sanitário ao risco financeiro, do risco económico ao risco securitário, através da formação de “comunidades de risco” europeias e cosmopolitas, pode ser a fonte de relegitimação política que faz falta à União Política Europeia, para lá da legitimidade formal que lhe é conferida pelas regras de governo das instituições europeias.

No plano global, a história e a geografia voltam a estar frente a frente. A qualquer momento pode eclodir um facto grave e precipitar uma crise de consequências imprevisíveis. Sempre foram os fatores externos a determinar os grandes momentos do projeto europeu. Hoje, os “bons pretextos” abundam: as migrações, as alterações climáticas, os estados falhados do Médio Oriente e do Norte de Africa, o problema russo-ucraniano, as implicações do neoprotecionismo global, o terrorismo internacional, para citar apenas alguns.

Os princípios gerais de um federalismo partilhado, cooperativo e descentralizado, protegem, por um lado, a União e os Estados mais pequenos de uma política de potência ou de um unilateralismo hegemónico e, por outro, de acordo com o princípio de subsidiariedade, reforçam as “competências descendentes” da autonomia local, regional e inter-regional e, no geral, a cooperação territorial descentralizada.

De acordo com uma visão mais civilista e cosmopolita da sociedade europeia, a soberania partilhada no quadro da teoria do federalismo, a carta dos direitos fundamentais e a procuradoria europeia, a preservação do modelo social europeu como paradigma civilizacional, a coesão territorial e a cobertura dos grandes riscos a nível europeu, são os traços essenciais de uma visão mais civilista, policêntrica e cosmopolita da sociedade europeia e constituem o primeiro bloco de bens comuns fundamentais.

Dou o exemplo da procuradoria europeia. Como é óbvio, um programa burocrático não tem nada a ver com um projeto político. É nesta linha de raciocínio que faz sentido o projeto da procuradoria europeia como expressão concreta de uma ação e de um ato de cidadania europeia, qual seja, o de mitigar o risco moral que se abre, justamente, com a liberdade de ser cidadão europeu. Anualmente, várias centenas de milhões de euros do orçamento europeu estão em risco de se perderem em virtude de fraudes, corrupção e outras infrações penais. Estes crimes põem em risco o Estado de direito, minam a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas e desviam verbas que deveriam ser consagradas ao desenvolvimento económico e social. Atualmente, a União Europeia não pode proceder judicialmente contra atividades criminosas lesivas do seu orçamento, os processos judiciais são inteiramente do foro nacional e os esforços das autoridades nacionais para combater essa criminalidade variam consideravelmente de um Estado membro para outro Estado membro. A dimensão do problema é europeia, logo necessitamos de uma resposta europeia, uma procuradoria europeia.

Um segundo bloco considera os bens comuns de natureza mais instrumental, a saber, a natureza, dimensão e funções do orçamento da união política, onde se inclui a tributação própria, em seguida, o papel do banco central com as funções de reserva federal e, por último, a criação de um fundo monetário europeu e de um mecanismo de gestão da dívida pública europeia com o duplo objetivo de providenciar maior estabilidade financeira aos Estados membros e mais recursos financeiros à União Europeia junto dos mercados internacionais, numa lógica claramente mais federal.

Finalmente, um terceiro bloco de bens comuns, onde se inclui a política externa e de segurança e a defesa comum, sendo de realçar nesse contexto as relações com a Rússia, o Grande Médio Oriente e o Mediterrâneo e, agora, também, as relações transatlânticas. Por paradoxal que possa parecer, estes fatores externos não são apenas ameaçadores para a Europa, podem ser, também, uma fonte e um pretexto unificadores, no sentido, se quisermos, de uma “nova guerra fria” junto à fronteira leste e sul europeia. A formação de uma União para o Mediterrâneo apoiada por um “Grande Plano Delors” pode desempenhar, neste contexto, um papel configurador e moderador de grande relevância geopolítica e geoestratégica.

Como facilmente se comprova, uma restrição fundamental que condicionará toda a política europeia no futuro próximo será o financiamento da política externa e de segurança comum que irá exigir, doravante, um volume muito mais substancial de recursos financeiros, se quisermos evitar que os riscos globais não se transformem rapidamente numa tragédia dos comuns. Para tal, teremos de mobilizar em conjunto as contribuições dos Estados membros, os recursos próprios do orçamento da união, os empréstimos financeiros do mercado internacional e os recursos monetários da própria reserva federal. Esta mobilização, por mais progressiva que seja, só é possível no quadro de uma União Política Europeia de características federais e de um sistema de governo com os atributos do federalismo cooperativo.

2. Bens comuns, contingência e prospetiva

Porquê a contingência europeia e a iminência de uma nova tragédia dos comuns na presente conjuntura?

Poderíamos talvez resumir dizendo que a contingência europeia sofre de uma dupla intransparência, a do futuro e a do presente ou, se quisermos, que “há muito pouco futuro para tanto presente”. Se a nossa relação com o futuro fosse saudável e prometedora os episódios ou acontecimentos mais recentes teriam provavelmente uma “distribuição normal” ao longo do eixo do tempo. Todavia, o facto de o futuro ser largamente incerto e intransparente faz com que os problemas se acumulem no presente que, dessa forma, aparece extremamente congestionado. Em consequência, já não se trata apenas de prever o futuro, trata-se agora, também, de “prever o presente” que vive uma vertigem permanente entre a turbulenta antecipação do futuro e a voragem histórica do passado recente.

Esta contingência europeia tem outra consequência muito relevante, qual seja, a impotência das instituições europeias no que diz respeito à efetividade do seu processo de tomada de decisão em matéria de problem-solving. Isto é, devido à escassez de soluções de futuro assistimos a uma espécie de fracionamento da decisão política europeia, a uma espécie de sucessão de decisões modestas e recorrentes sem eficácia real e substancial.

Assim, quem, afinal, responde, de modo responsável, perante o futuro do projeto europeu?

A atual situação de opacidade em matéria de imputação de responsabilidade é muito do agrado dos agentes políticos que desejam reduzir o perímetro político do projeto europeu, pois assim alargam bastante o seu espaço de ação e manobra. Em matéria de prospetiva do projeto europeu estamos, portanto, necessitados de um conceito de responsabilidade política e pública adequado à atual complexidade da sociedade europeia que, todavia, não nos deixe entrincheirados e à mercê da retórica fácil dos demagogos e dos populistas.

Vivemos uma cultura de contingência cognitiva (Daniel Innerarity, 2011, O futuro e os seus inimigos). Com efeito, nas condições atuais de extrema incerteza e contingência muitas decisões políticas são absolutamente irrelevantes. A decisão política tornou-se modesta, estamos continuadamente obrigados a tomar decisões, vivemos o tempo da prospetiva incremental em face do risco sistémico e interdependente, dos efeitos colaterais, da ingovernabilidade política e do radicalismo político-partidário.

Sem um mínimo de ordem política orientada para o futuro, que o federalismo cooperativo e os bens comuns poderiam garantir, a prospetiva é uma espécie de campo minado, pois estão lá todos os nossos receios e todas as nossas esperanças. Nada é pensado para durar, tudo é pensado para ser consumido, por isso, todos os cenários de futuro estão postos em causa sem um mínimo de discussão séria e consequente. Assim, face à incerteza do futuro, a política é uma atividade de responsabilidade limitada, ninguém está muito interessado em fazer esta ligação ao futuro responsabilizando-se por isso. Face à contingência e ao risco, a política é irresponsável e inimputável. Em troca, a política torna-se mais “um aparato” do que um pensamento inovador e articulado. Sucedem-se os sistemas de advertência e prevenção de riscos, os dispositivos de auto-regulação, a socialização dos prejuízos difusos. Finalmente, institucionalizam-se, por causa dos riscos, as consequências não-intencionais e indesejáveis e, por causa dessa institucionalização, quantas vezes abusiva (estado, bancos, empresas do regime), vivemos todos uma espécie de “fadiga ou melancolia institucional”. Entre a política europeia e a política doméstica os políticos e as suas clientelas são os mestres deste jogo bastante viciado de socialização dos prejuízos não-intencionais ou indesejáveis e dos seus efeitos sistémicos e colaterais. Dito de outra forma, a cumplicidade e a corrupção estão, de algum modo, protegidas nos termos de uma teoria geral da irresponsabilidade ou inimputabilidade políticas. Neste contexto de fadiga institucional, o futuro fica irremediavelmente enleado num labirinto de processos, procedimentos e regulamentos onde só alguns são verdadeiramente peritos.

3. O governo da união política europeia

De acordo com o sociólogo Ulrich Beck, “vivemos uma sociedade do risco, a essência de tudo é a incerteza, precisamos, por isso, de uma nova mobilização política porque o risco não é transparente e não é igual para todos; a Europa dos efeitos colaterais precisa de uma europeização construída de baixo para cima, talvez ela não deva ser uma união de nações, mas uma união de cidades ou regiões da Europa”.

Estas palavras avisadas e premonitórias de Ulrich Beck são uma espécie de intuição racional para a Europa Política do nosso tempo considerada, em primeira instância, como uma “comunidade de riscos globais” e, em segundo lugar, uma estrutura ou sistema de governo de natureza cosmopolita e cooperativa entre nações, cidades e regiões, no quadro de uma união política europeia de características federais e tendo como desafio programático a realização dos bens comuns enunciados mais acima.

Esta menção às nações, regiões e cidades é uma referência inspiradora, mas muito rara, para a construção do espaço público do “poder civil” europeu. Mais governação policontextual e mais policentrismo territorial, mais cooperação territorial descentralizada e governação multiníveis que, no conjunto, constituem a matéria-prima do federalismo subsidiário e cooperativo que importará aprofundar e amadurecer na transição para a união política europeia.

Mais singelamente, a questão central da construção europeia é, imagine-se, a de saber se os Estados nacionais são competentes para fazer o seu trabalho de casa. O propósito da construção europeia não parece ser a edificação de um Estado supranacional, pois, à evidência, um Estado supranacional é um Estado contraproducente. Falo de uma federação europeia e não de um estado federal. Uma Europa Federação é uma sociedade mais horizontal do que vertical, feita de estímulos, sanções e disciplinas, mais do que hierarquias, estruturas e organizações burocráticas que, uma vez criadas, criam a sua própria comunidade de interesses corporativos. Um equívoco muito comum em matéria europeia, quase um tabu, é a chamada via única, a “subsidiariedade ascendente”. Ora, a transferência de atribuições e competências entre as administrações europeia e nacionais e a respetiva reforma política daí decorrente é biunívoca, corre nos dois sentidos, umas vezes reforçando os poderes do centro em Bruxelas, outras vezes devolvendo poderes às capitais nacionais. Também aqui não há direitos adquiridos.

Pode haver uma política europeia sem um estado europeu? Esta é a pergunta que os europeus se colocam, pois está no cerne do seu próprio pensamento político. A Europa Federal tanto pode ser, no plano político, um Estado Federal, uma construção e um poder mais verticais, como uma Federação de Estados, uma construção e uma via mais horizontais. Mas também pode ser uma construção mais policêntrica e distribuída, de geometria variável consoante as policy-arease o grau de maturidade do sistema político da União, com menos governinge mais governance, no quadro de um sistema político de governação multiníveis com todas as características do método federal que, como sabemos, assenta na autonomia, na subsidiariedade e na consociação cooperativa com os sistemas político-administrativos nacionais e regionais.

Nota Final

Aqui chegados, o que fica por saber é se os europeus chegam lá por via da vontade ou por via do acaso, digamos, de um grande susto. No primeiro caso, a vontade pode expressar-se de uma só vez, por via constitucional, ou seguindo o método Monnet dos pequenos passos. No segundo caso, espero bem que não sejam os factos exteriores de uma gravidade elevada a determinar o impulso federal ou reformista que lhes falta, uma espécie de álibi externo para muitas dúvidas sistemáticas e crises de consciência a propósito do projeto europeu. Acresce que o pensamento político sobre estas matérias está muito condicionado pelas agendas oficiais, as corporações de interesses e as agências de propaganda político-mediática. No pensamento dominante, chama-se a isto “a realidade” e a realidade não se compadece com o federalismo cooperativo e a teoria dos bens comuns. Depois queixem-se.

Faltam 8 meses para a saída do Reino Unido (março de 2019) e 10 meses para as eleições de maio de 2019 para o Parlamento Europeu. O Presidente Macron sugeriu a realização de convenções nacionais sobre o projeto europeu. Do que é que estamos à espera?

Universidade do Algarve