Estratégia sem táctica pode ser um bom sonho, táctica sem estratégia é um pesadelo (Prof. Michael Clarke).
A Urgência Hospitalar é a ponta do iceberg da crise da Saúde. Problema antigo, complexo e multifactorial. Servirá algum propósito recordar? Ou do passado só se deve esperar eco silencioso?
Para sucessivas gerações a Urgência foi local de aprendizagem, de conhecimento, de regras de conduta profissional, de espírito de equipa e do exercício da responsabilidade hierárquica na decisão clínica.
A Urgência foi durante demasiado tempo o centro de gravidade da política de Saúde. Há cerca de 30 anos, o Prof. Jaime Celestino da Costa chamou a atenção para o erro que era basear a solução dos problemas da Medicina hospitalar apenas na disponibilização de urgências. Foi uma voz independente, entre outras, e ignorada. Os problemas agravaram-se, o custo financeiro maior se a orientação tivesse sido outra, a de reorganizar os Centros de Saúde e a Medicina pré-hospitalar para resolver a maioria dos problemas e assegurar triagem da verdadeira urgência. Mas não recordo esta situação deplorável, reportada nos media, de urgências abre/fecha, em yo-yo, exemplo inaceitável de falta de previsão e de acção do Ministério da Saúde (MS). Ninguém foi responsabilizado, mas os médicos que se reformaram ou saíram para o sector privado foram os bodes expiatórios para que nada mudasse. Táctica sem estratégia resultou em pesadelo e não serviu a boa política.
Vejamos algumas realidades.
Invoca-se que 50 a 60% da procura de urgência hospitalar em Portugal é falsa urgência, realidade diferente do panorama europeu. Mas não correspondem a falsas necessidades médicas das pessoas. As causas desta realidade são diversas: i) hábitos de uma cultura pública antiga que incorporou a Urgência como porto de abrigo, ii) ausência de resposta clínica, ambulatória e de proximidade, iii) Centros de Saúde espartilhados num horário de serviço público, com limitações das listas de utente por médico e dificuldade no acesso a consultas não previamente programadas, uma realidade infelizmente bem conhecida de todos, iv) organização das equipas hospitalares de urgência demasiado presa a modelos do passado.
A emergência médica é outra coisa. Contempla as situações que põem em risco a sobrevivência dos doentes ou causam incapacitação por ausência de tratamento adequado e imediato. Nestes 30 anos houve grandes desenvolvimentos que contribuíram para uma redução significativa da mortalidade nestas situações: i) informação e educação da população para os sinais clínicos mais comuns, ii) melhor intervenção pré-hospitalar no domicílio ou no local de acidente, iii) qualificação e organização do INEM a nível nacional para intervenção imediata e orientação do transporte, iv) Vias Verdes para o enfarte do miocárdio e para o AVC que, com a organização das equipas hospitalares, salvaram inúmeras vidas, v) identificação dos centros hospitalares de referência, funcionando 7d/24h com capacidade de intervenção imediata, vi) desenvolvimento da Medicina. Vivi este progresso, primeiro como chefe de equipa de Cirurgia, depois como cirurgião para a Urgência Vascular e finalmente como responsável de serviço no Hospital de Santa Maria. O sucesso depende da prontidão do diagnóstico, de medidas imediatas para a manutenção de funções vitais, da rapidez de transporte para centro de referência adequado e da resposta hospitalar frequentemente multidisciplinar, mas hierarquizada.
Para a solução do problema creio que se impõe estratégia de acção e táctica para a sua operacionalização, imediata e a médio prazo.
De imediato: i) cartografia actualizada dos recursos humanos e materiais da realidade hospitalar nas diferentes áreas regionais. Missão das ARS’s absolutamente fundamental, ii) racionalização dos serviços de Urgência baseados em indicadores de actividade como aliás se fez no passado, apesar das dificuldades experimentadas, iii) flexibilidade para recurso ao modelo de urgência metropolitana potenciando os meios disponíveis, com aviso prévio para as populações, INEM e serviço de ambulâncias. Como a task force para a Obstetrícia propôs e cuja nomeação só pecou por tardia.
O recurso aos médicos tarefeiros, solução táctica para uma necessidade imediata, organizou-se e criou um mercado, tornou-se indispensável. Sem uma estratégia de acção combinada e simultânea de estruturação das equipas hospitalares, pagamento adequado aos médicos e outros profissionais e incentivos nas suas carreiras, não haverá redução da sua dependência pelas instituições. Teria sido desejável antecipar os problemas e delinear um programa de acção? Obviamente que sim. Parece que com a Pandemia a vida parou no MS, mas não na realidade e na Saúde.
A médio prazo, a solução parece-me requerer uma nova visão e uma nova política para o diálogo com os profissionais de Saúde e para a cooperação com os sectores social e privado, ultrapassando preconceitos ideológicos que marcaram a Política de Saúde desde 2018. Precisar-se-á de:
- Reorganização da Medicina Ambulatória com implementação de estruturas pré–hospitalares dotadas de meios laboratoriais e de imagiologia, funcionando até às 22h, congregando médicos de família e outros especialistas – a medicina ambulatória do SNS não deve ser exclusiva da Medicina Geral e Familiar (MGF) – permitindo resolução de muitos casos e melhorando a referenciação hospitalar. As USF’s criadas e os ACES poderiam constituir os núcleos para estas novas instituições no sector público. E a cooperação com o sector privado permitiria colmatar necessidades mediante acordos de prestação de serviços. A negociar não de necessidade, mas no contexto duma nova visão para o Sistema de Saúde como ele na realidade existe. Porque não aproveitar o PRR para este tipo de investimento? Quatro requisitos são fundamentais para a sua implementação: liderança clínica, gestão competente, articulação eficaz com os hospitais e incorporação organizada de transformação digital.
- Política de recursos humanos inteligente, motivadora e com autonomia para contratação isenta e meritocrática de profissionais, com objectivos clínicos claros e quantificáveis, respeito pelos profissionais, pelo seu estatuto e carreiras, adopção de programas de desenvolvimento profissional para a sua formação continuada. Na essência, as regras da boa governação clínica, tão difícil de implementar nas nossas instituições. Não será certamente uma negociação fácil, necessitará de alguma reorganização das carreiras profissionais, de compatibilização com as disponibilidades financeiras, mas sugerir, na negociação em curso, como tecto financeiro a despesa pública de 2019 não parece bem e foi claramente reconhecido como inaceitável. Que fazer do número elevado de médicos que não foram admitidos nos Internatos? Recuso-me a usar a expressão de médicos indiferenciados para me referir a quem conseguiu a admissão nas escolas médicas, fez com aproveitamento 6 anos de educação superior e 1 ano de internato geral. É uma ofensa, talvez enquadrável no espírito oficial de downgrade da profissão. É um problema que requer uma negociação entre a Ordem dos Médicos e o Poder Político certamente em curso.
- Reforma hospitalar baseada em dois objectivos claros.Primeiro,a racionalização da provisão de serviços. A qualidade depende directamente do número de procedimentos – índex procedures – referenciados na literatura médica e de gestão hospitalar. Deveria ser um eixo fundamental para impedir redundância, promover melhor aproveitamento dos recursos humanos e reduzir desperdício financeiro. Segundo, identificação dos Centros de Referência para a grande emergência, urgência complexa, ou situações de catástrofe, para optimização do transporte dos doentes. Estes centros devem basear-se em hospitais com fácil acesso rodoviário e com heliporto, equipas multidisciplinares completas e em disponibilidade permanente: Reanimação e Cuidados Intensivos, Ortopedia, Cirurgia Geral, Neurologia e Neurocirurgia e Neurorradiologia, Cardiologia de Intervenção, Cirurgia Cardiotorácica e Cirurgia Vascular diferenciadas. É preciso melhorar o circuito dos doentes no exterior e no interior do hospital. Não faz o menor sentido doentes muito graves viajarem de elevador entre a Unidade de Cuidados Imediatos na Urgência, o local onde estão instalados os meios de diagnóstico e o Bloco Operatório. E continuar a esperar pelas salas híbridas que combinam capacidade de diagnóstico TAC, ressonância magnética e angiografia com a assepsia própria duma sala cirúrgica, um combate que travei sem sucesso durante mais de 10 anos. Dizem-me que estará prestes a concretizar-se, ainda bem. Salvar a vida do doente é o objectivo e qualquer obstáculo por reduzido que pareça defeats the purpose e pode ser fatal.
É, pois, neste contexto, que surge, novamente, a discussão sobre a especialidade de Medicina de Urgência. Resposta providencial à carência de recursos humanos nas Urgências hospitalares? Nada de mais errado. Especialidade autónoma ou competência complementar de outras especialidades? Como especialidade autónoma, conceptualmente, parece-me corresponder a uma visão errada da Medicina Clínica, da qual a urgência/emergência é um dos componentes, seja qual for a especialidade de actuação. A formação em trauma e emergência é objectivo da Educação Médica desde a pré-graduação para aprendizagem das regras da avaliação global do doente, da manutenção de funções vitais e da hierarquia na intervenção terapêutica. Programas de formação em Emergência Médica, com diferentes níveis de complexidade, deveriam ser obrigatórios na formação pós-graduada em Cirurgia, Anestesia, Medicina Interna e Intensivismo.
As tecnologias modernas de simulação avançada permitem aprendizagem e treino em realidade virtual muito próxima da verdadeira e são excelentes para promover melhor articulação dos profissionais. A sua implementação e frequência obrigatória pelas equipas da emergência hospitalar e pré-hospitalar é um objectivo prioritário e uma necessidade. A cooperação multidisciplinar é outro pilar da emergência médica, que nenhum especialista isolado poderá resolver, só no cinema. Dois exemplos práticos: i) grande acidente, doente com politrauma, múltiplas fracturas de costelas e membros, lesões abdominais e rotura traumática contida da aorta torácica. Ninguém isolado pode tratar e tentar salvar este doente. ii) enfarte do miocárdio ou AVC, quem vai desobstruir as artérias, o emergencista ou o especialista de serviço da área e a sua equipa? Formação em Trauma e Emergência, certamente. Necessidade de especialidade autónoma? Duvido. Mais um nicho de mercado, com as suas regras exclusivas de grupo na boa tradição corporativa! E um problema adicional que não vejo considerado. Nos países com grande violência civil e urbana, ou de guerra, as equipas de serviço nos centros especializados de trauma e emergência, periodicamente têm que voltar à rotina clínica para prevenir burnout, pelo enorme stress que a sua actividade suscita. Ninguém aguenta fazer só e sempre emergência médica! Mas confesso o meu receio de que estes novos especialistas propostos possam vir a ser considerados como a resposta para as necessidades médicas da Urgência!
Vivemos, pois, uma época difícil. Pertenço à geração que cresceu profissionalmente com o SNS, sem o qual não teriam sido possíveis as realizações conseguidas. Mas, sendo o tempo outro e a realidade social diferente, o combate é o mesmo, pelo Bem Comum. Pelos princípios e pelos valores: respeito pelas carreiras que potencie fidelização dos profissionais às suas instituições, contra a separação artificial da Urgência da restante Medicina Clínica, por uma organização hospitalar estruturada e pela reorganização da Medicina Ambulatória. E, também, pela cooperação inteligente e rigorosa com os sectores privado e social, pois o tempo dum SNS ensimesmado na sua teia terminou. Mas para além das profissões de fé à outrance sobre a sua defesa, nada realmente de novo parece estar a acontecer, neste verão quente e perigoso. Adapto o conceito de ilustre investigador de História Militar citado no início do texto: Política com táctica mas sem estratégia é um pesadelo!